Modificar padrões há tanto tempo inseridos no desenho viário nas cidades brasileiras exige grande esforço e comprometimento. Existem muitos desafios para transformar uma via em Rua Completa, ou seja, para adequar a infraestrutura de forma a permitir o melhor uso conforme sua vocação, focando na segurança e no conforto de todos os usuários. As experiências de três cidades brasileiras que estão planejando Ruas Completas ajudam a identificar os principais desafios e revelar algumas soluções encontradas para destravar esses projetos.

São elas, Campinas, Recife e Porto Alegre e seus respectivos projetos: Rua José PaulinoRua da Hora e Rua João Alfredo. Ao conversar com os gestores diretamente envolvidos, é possível identificar alguns dos fatores-chave para alcançar o sucesso na implementação de uma Rua Completa.

Os depoimentos de Marcelo José Vieira Oliveira, gerente da Divisão de Inovação e Tecnologia para Mobilidade Urbana (DPI/EMDEC) de Campinas, Sideney Schreiner, diretor executivo de Planejamento da Mobilidade do Instituto da Cidade Pelópidas Silveira (ICPS) de Recife, e Rodrigo Corradi, diretor de Articulação Institucional e Resiliência da Secretaria Municipal de Relações Institucionais (SMRI) de Porto Alegre, levantam alguns pontos em comum.

Engajamento da população e dos tomadores de decisão 

A contribuição da população é um ponto chave na transformação do espaço urbano. Uma Rua Completa é pensada para oferecer benefícios a todos que a utilizam e, portanto, deve ser feita com o entendimento e participação dos cidadãos. No entanto, as mudanças também geram dúvidas e receios de quem utiliza os espaços, fato que deve ser tratado pelo projeto.

“O projeto traz conceitos ainda novos à cultura brasileira, como prioridade ao pedestre, ciclista e transporte público sobre os demais modos de transporte. Esse foco inovador, e a participação de tantos pontos de vista distintos na discussão do projeto, poderia ser visto como uma barreira. No entanto, não entendemos assim. São sem dúvida grandes desafios, mas para a Empresa Municipal de Desenvolvimento de Campinas (EMDEC) é também a maior virtude do projeto, pois o fortalece muito”, afirma Marcelo. A participação popular que envolve comerciantes, moradores e usuários da via é bastante explorada ao longo do trabalho na Rua José Paulino.

Sideney A. Schreiner, de Recife. (Foto: Daniel Hunter/WRI Brasil)Para Sideney (foto à direita), em Recife uma das principais barreiras encontradas no andamento do projeto é a resistência da população e até mesmo dos próprios técnicos da prefeitura à redução do espaço para os carros. “Os técnicos, que em sua maioria utilizam o carro particular como meio de transporte, mostram ainda muita resistência em reduzir o espaço utilizado pelo automóvel ou mesmo em implantar travessias seguras devido à interferência que essas ações impõem ao fluxo de tráfego”, conta. A cidade atualmente busca, através da apresentação de dados, atuar em um processo de convencimento dos tomadores de decisão no nível dos secretários das pastas relacionadas com a mobilidade urbana.

Na Rua João Alfredo, na capital gaúcha, as dificuldades surgem das mudanças pelas quais a via passou ao longo das últimas décadas. Localizada em um bairro que se tornou um dos principais redutos da vida noturna na cidade, os moradores que lá residem há 30 ou 40 anos estão perdendo a sua identificação com a região, antes de característica mais residencial. "O uso foi mudando ao longo do tempo e criando uma tensão em todo o bairro. É um debate que estamos avançando de maneira muito transversal dentro da região", explica Rodrigo. "A João Alfredo é um microcosmos de todo o debate que tem acontecido no bairro de maneira geral. É uma ressignificação de todo o território, de entendimento da diversidade que temos em espaços mistos. Quando acontece isso, os diferentes públicos não se somam, mas criam uma relação adversarial."

A cidade busca o diálogo com a população através do Grupo de Trabalho (GT) da Cidade Baixa, iniciativa criada oficialmente no ano passado, mas que, segundo Rodrigo, foi consolidada com o projeto de Ruas Completas. "Precisamos fazer um trabalho no sentido de juntar perspectivas. Por si só isso esse é o grande elemento complicador do projeto, mas também é o mais interessante, o mais desafiador", destaca. "Enquanto o GT da Cidade Baixa tenta dar um contorno de governança para o território, o Ruas é um projeto que quer criar uma solução urbanística para ele. Por essa razão, o projeto alcança temas que o GT não consegue."

Alinhamento entre secretarias municipais

O alinhamento entre diferentes secretarias da prefeitura é essencial para o sucesso do projeto. Um projeto de Rua Completa pode envolver setores relacionados a mobilidade, planejamento urbano, obras, saúde, educação, entre outros, dependendo da estrutura de cada cidade. A boa integração institucional do município aumenta a fluidez dos processos.

Segundo Marcelo, o projeto de Ruas Completas exerceu influência no trabalho da prefeitura de Campinas ao melhor integrar as secretarias. "Em suas rotinas e dentro de suas distintas competências, nem sempre existe a interação necessária para esse tipo de projeto", explica. "Na visão da EMDEC, o sucesso de uma Rua Completa exige o envolvimento e participação de todos. Isso naturalmente fortalece o interesse e envolvimento de cada uma das partes, que se veem realmente como parte do processo e das soluções. Nesse caso específico da José Paulino, que depende de muitas das competências da prefeitura e de outras empresas públicas e privadas, essa articulação é fundamental para o sucesso e completude do projeto.”

Em Porto Alegre, Rodrigo (foto à esquerda) conta que após um tempo de validação interna dos processos, atualmente tudo funciona de maneira articulada. "Temos um grupo de trabalho já estabelecido para executar o Ruas Completas, existe um bom alinhamento com os tomadores de decisão e um encaminhamento bem claro de titularidades, quem faz a gestão técnica, quem faz a gestão política. Temos ainda uma sequência de secretarias que hoje ajudam a construir as soluções específicas e a transformá-las em política pública no território."

Para Sideney, transformar em realidade o projeto da Rua da Hora é uma mudança que começa pela estrutura institucional da própria Prefeitura. “Questões como calçadas e rede cicloviária não podem ser tratadas como infraestrutura de forma segregada da mobilidade. E a mobilidade não pode ser tratada apenas como a operação dos modos motorizados (individuais e coletivos). Na mesma linha, planejamento e operação devem ser delimitados claramente, ambos contemplando todos os aspectos da mobilidade urbana”, esclarece.

Financiamento

A viabilidade financeira dos projetos é um dos principais desafios enfrentados nas cidades. A organização de um modelo de negócio para a estruturação financeira do projeto é uma estratégia utilizada pelas três cidades. O processo é mais uma forma de alinhamento entre setores, já que uma Rua Completa integra diversas infraestruturas urbanas.

“Como principais barreiras elencamos as dificuldades de o município levantar os investimentos externos necessários, pois faltam atualmente programas, principalmente federais, que favoreçam iniciativas desse tipo”, afirma Marcelo (foto à esquerda). Sideney também acredita que faltam possibilidades de financiamento para projetos integrados como os propostos pelo conceito de Ruas Completas. "Na minha opinião, é resultado de uma estratificação exagerada da responsabilidade da operação e manutenção das infraestruturas urbanas, que se reflete nas políticas de financiamento, principalmente do Governo Federal”, explica.

As escalas de intervenção das Ruas Completas indicam o investimento necessário em cada projeto. O empreendimento pode ir desde uma intervenção intermediária, que pode durar de 1 a 5 anos, até uma obra definitiva. Um dos Seminários Online Ruas Completas contemplou o financiamento de Ruas Completas e apresentou algumas dicas de como encontrar os recursos para esse tipo de projeto, abordando estratégias como parcerias e a criação de programas que permitam acesso a um volume maior de recursos junto a agências financiadoras.

Ruas Completas nos Planos

Campinas, Porto Alegre e Recife não enxergam o projeto de Ruas Completas como uma iniciativa isolada, mas como uma nova maneira de pensar a mobilidade. Em Campinas, a transformação da José Paulino está inserida em um local estratégico, no centro do município, que deverá passar por um processo de valorização a partir do novo Plano Diretor. Esse Plano, recentemente publicado, traz diversos conceitos de Ruas Completas como valorização do espaço público, qualificação ambiental, valorização da relação com o pedestre, acessibilidade, entre outros. "A Rua Completa José Paulino servirá como modelo e indutor para o município. Melhorar a mobilidade e a segurança viária, foco da transformação da José Paulino, com certeza é uma prioridade do município", diz Marcelo.

“Vejo o projeto da Rua da Hora como um piloto. É um estudo de caso para identificar os desafios e preparar o próprio processo de planejamento, projeto e execução para essa nova visão de gestão do espaço urbano. O Plano de Mobilidade do Recife já adota o conceito de Ruas Completas como parte da sua estratégia de implementação. A intenção é que os projetos viários sejam integrados do ponto de vista do conceito de Ruas Completas para todos as ações a serem definidas pelo Plano”, destaca Sideney.

"Temos interesse de que o modelo de Ruas Completas possa ser impulsionado pela revisão do Plano de Mobilidade da cidade e que, através da metodologia do Ruas, possa conectar com a nossa estratégia de mobilidade ativa. Queremos utilizar o Ruas como uma ferramenta de indução de um novo pensamento sobre a gestão da mobilidade na cidade, no qual a mobilidade ativa tem o papel de ser um gatilho para pensar em investimentos em mobilidade na cidade", explica Rodrigo.


Para aprender mais sobre os princípios e benefícios de Ruas Completas, acompanhe os Seminários Online promovidos pelo WRI Brasil e pela Frente Nacional de Prefeitos (FNP).