Reconhecidamente negligenciado nas últimas décadas no Brasil, o debate sobre qualidade do ar voltou à pauta em 2018 com a discussão dos padrões no âmbito do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). O WRI Brasil tem provocado a reunião de atores de diversos setores na busca por estratégias e ações que contribuam para soluções multidisciplinares para esse complexo desafio. Percebe-se que é necessário reunir forças para uma ação integrada entre as mais diferentes esferas da sociedade. Só com a união de conhecimentos e capacidades de ação será possível vislumbrar um futuro em que respirar nos centros urbanos não seja comparável a fumar como atualmente.

Durante o Seminário Qualidade do Ar em Centros Urbanos, realizado pela organização em outubro em São Paulo, foi possível perceber alguns caminhos para lidar com o problema:

Monitorar para mudar

É preciso fazer mais do que estabelecer padrões de qualidade do ar condizentes com o conhecimento atual. Mas isso não quer dizer que a resolução 03/90, recém aprovada pelo Conama, não seja elemento básico para atitudes mais proativas em relação às emissões de poluentes nas cidades e estados. Atualmente, a resolução é extremanente permissiva, já que aceita uma concentração de 120 ug/m³ (120 microgramas por metro cúbico) de material particulado (PM10) e só se tornaria uma emergência com 500 µg/m³, um valor 10 vezes maior do que os 50 µg/m³ considerados seguros para a saúde da população de acordo com a OMS.

O monitoramento dos valores dos índices de poluição é responsabilidade do estado, assim como a penalidade sobre o não cumprimento desta atividade. Também é de responsabilidade do estado apresentar o resultado dos dados coletados a toda sociedade, dando mais transparência ao monitoramento. A sociedade tem o direito de saber exatamente o que está respirando de acordo com o saber científico consolidado, como é o caso dos valores recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

No entanto, a definição dos padrões nacionais precisa ser acompanhada por um avanço significativo no monitoramento e na gestão. A maioria dos estados brasileiros ainda não tem um sistema robusto de medições. Um estudo feito por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais mostrou que no caso das partículas finas, como o MP2,5, apenas 24 cidades brasileiras fazem o monitoramento, todas no sudeste brasileiro, e quase 90% das concentrações anuais de MP2,5 nas cidades brasileiras foram superiores às diretrizes da OMS.

É fundamental contar com padrões de qualidade do ar alinhados às melhores práticas internacionais. Mas isso não será suficiente sem outras medidas que envolvem desde a sociedade até outras ações governamentais no nível federal, estadual e local.

A implementação de mudanças no nível municipal

Os transportes são os maiores emissores e poluentes atmosféricos nas cidades. Melhorias no planejamento urbano causam um impacto direto nos modos como as pessoas e bens de deslocam nas cidades e como consequência podem diminuir as emissões das cidades. O monitoramento insuficiente também impede que o desenvolvimento urbano seja pensado para contribuir para reduzir emissões a nivel local. Durante o Seminário Qualidade do Ar nos Centros Urbanos, Carolina Cominotti, assessora técnica em Planejamento Urbano na Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes de São Paulo, apresentou o programa Sexta sem Carro e ressaltou que a cidade ainda busca uma maneira de calcular o impacto da iniciativa sobre a emissão de poluentes.

Apesar do monitoramento ser uma função do estado, a cidade é a esfera de decisão com competência para criação e alteração da política urbana. Desta forma, os municípios são agentes ativos para combater esses problemas. Eveline Trevisan, coordenadora de Sustentabilidade e Meio Ambiente da BHTrans, lembrou que ao debater projetos de zonas 30 na cidade, a equipe decidiu mudar o foco da comunicação e dos projetos para garantir que as novas intervenções fossem voltadas para os mais vulneráveis, especialmente crianças e idosos. Com isso, ganhou maior apoio da população sem deixar de atender os ciclistas, antes o público-alvo do projeto.

Vencer possíveis barreiras a partir da mudança de abordagem também foi lembrado por Carolina. Ela contou que no caso da Sexta Sem Carro, o caráter temporário fez com que opositores ao projeto fossem mais flexíveis, por entender que era possível voltar atrás. Além de permitir à cidade testar a solução e incorporar sugestões e críticas ao trabalho.

Daniel Mancebo, coordenador geral do Escritório de Planejamento da Subsecretaria de Planejamento e Gestão Governamental da Prefeitura do Rio de Janeiro, trouxe outra perspectiva: a cidade quer manter seu inventário de emissões de gases de efeito estufa (GEE) atualizados, para coordenar o debate de emissões com as ações no território. É uma maneira indireta de lidar com a questão da poluição e de unir a força de dois temas: a qualidade do ar e as emissões de GEE.

Abordagem multissetorial

Percebe-se que o desafio de manter a concentração de poluentes em níveis saudáveis exige ação conjunta entre governos das diferentes esferas, sociedade civil organizada e setor privado. Assim como a definição dos padrões de qualidade do ar vale para o nível nacional, exige dos governos estaduais a gestão para garantir o monitoramento e das cidades as ações capazes de mitigar a emissão de poluentes.

O rodízio municipal de veículos de São Paulo é uma restrição à circulação de veículos, implementado desde 1996 para melhorar as condições do ar da cidade. A iniciativa foi idealizada a partir de uma necessidade de garantir um ar mais limpo e possbilitar ganhos na saúde para as pessoas. No entanto, o rodízio se consolidou como um instrumento para reduzir congestionamentos nas principais vias da cidade, nos horários de pico.

O seminário também foi rico em expor os impactos da poluição do ar na saúde a partir da participação de especialistas que são referência em sua área de atuação, como Paulo Saldiva, Simone Miraglia e Anne Dorothée Slovic, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), Mara Lúcia Oliveira, consultora nacional da Organização Pan-Americana de Saúde no Brasil, entre outros. Sobram evidências da correlação entre poluentes e internações ou mortes.

Em alguns casos, comunicar as mensagens corretas pode ajudar ações individuais capazes de contribuir com a redução nas emissões de poluentes. A mobilidade tem alto potencial nesse sentido, se os resultados das escolhas diárias de locomoção forem percebidos em sua totalidade pelas pessoas. JP Amaral, que é co-fundador do Bike Anjo, rede de ciclistas que promove, mobiliza e apoia pessoas a utilizarem a bicicleta como um meio de transporte nas cidades, trouxe um ponto interessante: na primeira avaliação de impacto da rede, eles perceberam que 70% das pessoas que procuram o Bike Anjo para começar a pedalar fazem por questões de saúde.

As florestas, por exemplo, têm um papel importante para a saúde e a qualidade de vida dos moradores das cidades. As chamadas florestas internas, como parques, praças, ruas e quintais, ajudam a limpar o ar e o microclima, além de fornecer sombra, lazer, ambiente para animais e agregar valor aos imóveis. As florestas próximas e mesmo as distantes também têm papel importante, e iniciativas como o Cities4Forests, que conta com cidades brasileiras engajadas, ajudam a catalisar ações com benefícios também para a qualidade do ar.