Quando o medo é provocado por situações que não deveriam representar perigo, estamos diante de uma inversão lógica. Especialmente quando esse medo é desencadeado pela violação de uma conduta de civilidade básica: o respeito. Essa é a realidade diária de milhões de mulheres que utilizam o transporte coletivo nas cidades brasileiras e temem ser vítimas de assédio e violência.

Para as mulheres, além do desrespeito à sua integridade, ao seu corpo – em suma, a tudo o que nos constitui como pessoas –, o medo se torna determinante na escolha de trajetos, linhas, locais e horários. Dito de outro modo, o transporte coletivo, que em tese deveria garantir a mobilidade, pode se tornar um limitador substancial do acesso à cidade e às oportunidades que ela oferece.

Em 2016, entre 5,2 milhões e 7,9 milhões de mulheres com mais de 16 anos relataram ter sido vítimas de assédio físico no transporte coletivo, conforme mostra pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Soma-se à violência o receio e a dificuldade de denunciar: no mesmo ano, de todos os casos de violência estimados (entre 16 milhões e 19,9 milhões de mulheres), apenas 11% afirmaram ter procurado uma delegacia da mulher.

O assédio no transporte coletivo é um problema grave e urgente que as cidades têm nas mãos, e vêm de Fortaleza alguns dos bons exemplos brasileiros de ações para coibir a violência e facilitar e encorajar a denúncia dos casos de assédio.

<p>Mulheres sentada dentro do ônibus (Foto: Bruno Campos de Souza/WRI Brasil)</p>
Mulheres fazem diferentes usos do transporte coletivo e possuem diferentes necessidades de deslocamento. Tanto o planejamento urbano quanto o de sistemas de transporte precisam considerar essas diferenças (Foto: Bruno Campos de Souza/WRI Brasil)

Respeito Coletivo e Nina

Na capital cearense, as mulheres representam 60% dos usuários do transporte coletivo. Com o objetivo de combater a violência e garantir a segurança das passageiras, a cidade anunciou em novembro de 2018 o Programa de Combate ao Assédio no Transporte Público, do qual fazem parte duas novas ações, lançadas neste mês: a campanha Respeito Coletivo e o botão de denúncia Nina, um dos projetos finalistas do Desafio InoveMob.

“Descobrimos que os dois maiores problemas relacionados ao assédio sexual no transporte público são a impunidade e a culpabilização/constrangimento da vítima, fatores que contribuem diretamente para a falta de denúncia”, comenta Bianca Macêdo, engenheira civil da Prefeitura de Fortaleza e responsável pelo Programa de Combate ao Assédio Sexual no Transporte Público. “Com o programa e as ações, queremos incentivar a denúncia, por meio de uma ferramenta que facilita o processo; coibir o assédio, com a divulgação da ferramenta, geração de provas e atuação junto à Polícia Civil; e gerar dados das ocorrências de assédio sexual no transporte público em Fortaleza, hoje escassos, que ajudarão a identificar padrões para que se possa fazer um trabalho preventivo”, acrescenta.

Idealizado por Simony César, o Nina é uma iniciativa pioneira no Brasil que facilita as denúncias e rastreia as ocorrências. Integrado ao aplicativo do sistema de transporte coletivo de Fortaleza (Meu Ônibus), o recurso possibilita a gravação de vídeos das ocorrências de assédio sexual dentro do transporte público, que poderão ser utilizados como evidências pela Polícia Civil.

(Foto: Daniel Hunter/WRI Brasil)

Para Simony (à direita), a implementação do Nina e o Programa lançado pela capital cearense representam um avanço nas ações de combate à violência: “Temos uma carência significativa de dados para rastrear e identificar as denúncias e ter uma dimensão do assédio na mobilidade urbana. Em geral, em termos de política pública, nenhuma mulher é incentivada a denunciar. O Nina é um canal facilitado para a denúncia. E a política que permitiu que o Nina fosse lançado em Fortaleza é um incentivo”.

Ao implementar a ferramenta, o objetivo de Fortaleza é incentivar que tanto vítimas quanto testemunhas denunciem os casos às entidades competentes, de forma a inibir esse tipo de comportamento. Além disso, o Nina também funcionará como ferramenta de mapeamento dos casos, identificando pontos críticos e, com isso, auxiliando a administração municipal a agir de forma mais precisa e efetiva. “A violência de gênero sempre foi pensada como um problema privado. É muito difícil criar um programa amplo como esse, envolvendo diversos setores e entidades, para tratar o problema do assédio no ambiente público – não me recordo de outra cidade que tenha lançado um programa com esses mecanismos. Com a identificação dos pontos críticos, a prefeitura poderá agir de forma mais assertiva”, considera Simony.

Na tarde do último domingo (17), a campanha Respeito Coletivo e o Nina receberam também o apoio dos dois principais times de futebol da capital cearense – Fortaleza e Ceará. No clássico pela Copa do Nordeste, foram distribuídos materiais educativos e os jogadores entraram em campo com uma camisa que destacou a campanha da prefeitura.

O Programa de Combate ao Assédio no Transporte Público de Fortaleza, do qual o Nina faz parte, traz um conjunto de ações para combater a violência e o assédio. Iluminação dos pontos de parada, pesquisas de monitoramento com as passageiras, um protocolo de atendimento para ações em flagrante e capacitações para os operadores de transporte coletivo, funcionários da Prefeitura, Polícia e Guarda Municipal sobre a temática do assédio são outras frentes de ação previstas pelo programa. “A longo prazo, queremos expandir o Programa, de forma a obter um conjunto permanente de ações em Fortaleza. Também esperamos que a iniciativa inspire outras cidades a iniciarem essa frente de trabalho, pois o problema do assédio é um desafio mundial, que afeta a vida da maioria das mulheres e as restringe do seu direito de liberdade e tranquilidade em seus deslocamentos”, enfatiza Bianca.

Pensando no futuro, Simony vê o Nina como um indutor de mudanças:

“Espero que as estatísticas que o Nina trouxer possam influenciar novas políticas públicas e ações e que a sociedade entenda que, independentemente da roupa que a mulher usa e da hora que ela sai de casa, o problema nunca será ela – o problema é o agressor. Espero que os dados possam provocar tanto na gestão quanto na opinião pública uma reflexão e uma crítica ao modelo de cidade que impomos às mulheres. O papel do Nina é trazer esses dados, levantar a discussão e fazer com que isso reverbere em ações não no futuro, mas no presente.”

Além da violência: mulheres e a mobilidade

O transporte coletivo é um instrumento que pode garantir – ou não – o acesso das mulheres às oportunidades de trabalho e lazer e aos serviços urbanos de que necessitam. Um sistema mal planejado e que não considere determinadas necessidades específicas das mulheres limita sua autonomia social e financeira.

Na visão de Bianca, a participação das mulheres no planejamento e na gestão é fundamental para que isso não aconteça: “O ramo da mobilidade urbana ainda é majoritariamente composto por homens, desde o planejamento à provisão dos serviços. Isso reverbera na forma como as cidades são pensadas e para quem são pensadas. Por isso é tão importante aumentar a participação de mulheres tanto no planejamento quanto na construção e prestação de serviços relacionados à mobilidade”.

As mulheres possuem diferentes necessidades de mobilidade e fazem diferentes usos dos sistemas de transporte que precisam ser levados em consideração para que possam de fato se beneficiar do transporte coletivo. “Elas são maioria no transporte público e na mobilidade a pé. Realizam deslocamentos múltiplos e mais diversos, incluindo motivos de compras, acompanhar crianças à escola, acompanhar idosos ao médico. São viagens mais complexas, encadeadas e com maior participação nos períodos fora do pico”, comenta Bianca.

Pontos de parada flexíveis à noite, que as permitam descer mais perto do destino, ajudam a evitar o risco de assaltos e estupros. Para as gestantes, freadas, trancos, empurrões e quedas são riscos impostos pelos veículos e que não são considerados no processo de planejamento. Espaço para os carrinhos de bebê, portas e acessos mais largos, corrimãos em nível mais baixo – todos são pequenos detalhes que fazem a diferença. Dados do IBGE revelam que mais de 80% das crianças no Brasil possuem a mãe como primeira responsável – mulheres que utilizam o transporte coletivo para levar e buscar os filhos na escola poderiam, por exemplo, contar com uma integração específica. Do mesmo modo, valores tarifários mais baixos fora dos horários de pico ou bilhetes de integração para viagens múltiplas e curtas também ajudam, aponta Bianca. Em Fortaleza, além do Bilhete Único, que permite a integração em um período de até duas horas, passageiras e passageiros também contam com a Tarifa Social, que consiste em um valor mais barato pela passagem nas viagens fora dos horários de pico. Outra inciativa que também contribui nesse sentido é o projeto piloto iniciado recentemente de tarifas mais módicas em viagens intrabairros de curta distância.

Aumentar a representatividade feminina no contexto de tomada de decisão e de planejamento das cidades é fundamental para evitar as circunstâncias que hoje ameaçam a vida das mulheres – na rua, no transporte coletivo, a pé, de bicicleta. “É preciso pensar o transporte coletivo para quem está na base, para quem realmente usa e depende desse transporte. Não necessariamente para quem faz o deslocamento do ponto A ao ponto B, mas para quem precisa fazer múltiplos deslocamentos e paradas – seja para ir ao supermercado, para deixar o filho na escola, para buscá-lo depois. Ou seja, pensar o planejamento da cidade a partir do deslocamento dessas pessoas, que afinal passam mais tempo se deslocando na cidade”, acrescenta Simony.