Este artigo foi originalmente publicado no jornal Valor Econômico.


A delação da JBS vem causando uma enorme crise de autoconfiança e de imagem pública no seio do agronegócio. Na crise, estes atores econômicos querem desacoplar sua imagem da corrupção da pesada e elegem a segurança alimentar como sua linha de defesa. Não há como discordar do nobre objetivo de garantir alimento a todos, mas isso pode ser feito com maior ou menor repartição de benefícios e impacto ambiental e na saúde.

E também com maior diversidade de alimentos, não apoiado pelo modelo de agronegócio industrial. Defensores desde modelo perguntam: o que o brasileiro vai comer e criticam diversidade de oferta, chegando a ironicamente sugerir: comam açaí!

Estudos rigorosos realizados, por exemplo, pela Embrapa - não a opinião de ambientalistas - não deixam qualquer dúvida de que o país pode produzir bem mais proteína animal e vegetal diminuindo a área total de pastagem ao recorrer à ciência e tecnologia, reduzindo, assim, a pressão expansionista da fronteira agropecuária na Amazônia e no Cerrado. Assim, ignoremos aqueles que querem restringir nossas opções de dieta e vamos, sim, continuar comendo açaí.

Independente de uma visão de consumir produtos da floresta somente por sua origem, o açaí está se tornando um produto importante na economia regional da Amazônia e do país. Ao mesmo tempo, ilustra muito bem um caso concreto da viabilidade de uma economia de floresta em pé.

O açaí é fruto de palmeiras da Amazônia, espécies abundantes com mais de 100 árvores por hectare e maior ocorrência na porção leste da bacia em florestas de várzea. Assim como milhares de outros produtos naturais originários da enorme biodiversidade tropical, era alimento utilizado milenarmente por populações indígenas. Hábito alimentar assimilado pelos caboclos amazônicos, os quais, ao longo de alguns séculos, desenvolveram técnicas eficazes de seleção e aumento da produtividade em sistemas agroflorestais.

Até a década de 90, continuava a ser alimento básico de Amazônidas, misturado à farinha de mandioca - algo equivalente ao arroz com feijão de muitas partes do país -, além de ser consumido em cidades da Amazônia na forma de suco e sorvete.

A aparição do açaí numa popular novela de televisão nos anos 90 como alimento energético associado à saúde e consumido por jovens sarados em academias de ginástica foi o ponto de partida para sua valorização cultural e crescimento exponencial de seu consumo, primeiro no Brasil e gradativamente atingindo mercados globais. Isto conectou firmemente os agricultores de sistemas agroflorestais da Amazônia com mercados globais e as técnicas de produção, coleta e processamento foram aperfeiçoadas.

Hoje, o açaí é importante elemento da economia regional, principalmente do Pará. São produzidas por ano mais de 200 mil toneladas de frutos de açaí, além de palmito e outros produtos, e o valor desta produção para a economia da Amazônia é considerável. Segundo estudos do economista Francisco da Costa, da Universidade Federal do Pará, o valor da produção do açaí fica atrás apenas da carne bovina e madeira tropical - vetores principais de desmatamento da floresta - entre produtos de origem animal e vegetal da Amazônia e com uma taxa de crescimento que o colocará em segundo lugar em poucos anos.

<p>Edina dos Anjos do Nascimento Siqueira, 50 anos, durante a colheita do açaí em Belém (foto: Sidney Oliveira/AG Pará)

Edina dos Anjos do Nascimento Siqueira, 50 anos, durante a colheita do açaí em Belém (foto: Sidney Oliveira/AG Pará)


Ainda que a proporção da renda total da cadeia produtiva do açaí que reverta para seus produtores seja menor do que 15% do valor total, estes rendimentos são muito superiores àqueles percebidos por trabalhadores na pecuária ou na extração madeireira e são a fonte de renda principal para mais de 350 mil pessoas no Pará.

Agregação de valor com utilização de conhecimento científico e novas tecnologias aumentou em muito o valor do açaí. Parte da descoberta de muitos novos usos aconteceu, curiosamente, na Califórnia, quando dois jovens empreendedores californianos levaram o açaí para laboratórios de pesquisa de lá que desenvolveram várias aplicações como alimentos funcionais, suplementos alimentares e cosméticos, com expressiva agregação de valor.

A Embrapa de Belém deu um exemplo do potencial de ciência, tecnologia e inovação para alavancar uma economia de floresta em pé. Descobriu - e patenteou - o uso de uma substância da polpa do açaí como marcador natural de placa bacteriana dentária, com possibilidades alentadoras de mercado.

A agricultura global utiliza somente 12 espécies de grãos, 23 de legumes e 35 de frutas e castanhas. Diversificação de dieta é importante para nutrição e também para adaptação às mudanças climáticas.

Já na Amazônia, são conhecidos e utilizados, ainda que em pequena escala, muitas centenas de produtos da biodiversidade e que sustentariam com folga, se seguissem o exemplo do açaí, uma economia muito mais dinâmica, equitativa e poderosa em comparação à atual economia regional baseada em carne, madeira, grãos, energia e minérios, por natureza concentradores de renda.

Porém, o maior potencial está no que ainda não foi descoberto. O grande capital deste século não é material, mas conhecimento. A ciência e tecnologia podem trazer conhecimento sobre os incomparáveis ativos biológicos escondidos na biodiversidade amazônica, alavancando inúmeras novas bioindústrias e serviços numa trajetória inovadora para algo perseguido por muitos países desenvolvidos: a bioeconomia do futuro.

E afinal, o que os brasileiros vão comer? Vamos comer uma dieta diversificada que terá, sim, carne, mas em menor quantidade, e oferecerá cada vez mais produtos sustentavelmente produzidos a partir da nossa incomensurável biodiversidade, um bem para nossa saúde e para o planeta. E viva o açaí!