Geógrafo ou urbanista? Henrique Evers, gerente de Desenvolvimento Urbano do WRI Brasil, mostra que é possível ser as duas coisas ao mesmo tempo. Depois de dedicar-se ao mapeamento do território, com foco nos Sistemas de Informações Geográficas (SIG), percebeu que também poderia desenvolver o papel de planejador urbano. A conexão entre os dois mundos ocorreu após se dedicar a projetos de mobilidade urbana. Henrique percebeu que havia uma sinergia importante entre coordenar a infraestrutura de transporte com as ações nos territórios das cidades.

Essa trajetória culminou na especialização em Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável (DOTS), um conceito que eleva projetos de transporte a vetores de desenvolvimento das cidades e não apenas a soluções de mobilidade. Ao longo dos quatro anos no WRI Brasil, o especialista também trabalhou com habitação de interesse social e com soluções para tornar grandes projetos de infraestrutura viáveis financeiramente.

Para a maioria das pessoas, é difícil relacionar o estudo da geografia e do território com a mobilidade, por exemplo. Você pode explicar como se dá essa relação?

Henrique Evers - No Brasil essa relação entre geografia e planejamento urbano não é tão clara quanto em outros lugares. Foi uma das coisas que me chamou a atenção quando fiz o mestrado na Espanha. Vi que na Europa o papel do geógrafo é justamente de planejador urbano, de urbanista. Lá abri meus olhos para essa relação. Ela se dá de uma forma bem natural, porque o geógrafo trabalha com uma abordagem bem ampla, trabalha com vários itens e não aprofunda tanto em nenhum. Isso é bem interessante que se vai coordenar uma série de ações dentro de um território, no caso uma cidade, que tem áreas de proteção ambiental, de desenvolvimento econômico, questão de habitação, questões bastante ligadas a ciências sociais, mas também outras ligadas ao meio ambiente. Então, hoje consigo transitar nesses assuntos diferentes com certa naturalidade.

Por onde começou a sua trajetória no WRI Brasil?

No WRI comecei a trabalhar com planejamento urbano e com o Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável (DOTS). O DOTS acaba tratando do uso do solo vinculado à infraestrutura de transporte. Meu trabalho aqui iniciou bastante focado em entender esse conceito, aprimorá-lo, trazer para a realidade brasileira, mas principalmente, o desafio era como implementar. Ao trabalhar nisso, começamos a deparar com uma das maiores barreiras que é como financiar projetos integrados, de transporte, uso do solo e desenvolvimento imobiliário. A partir disso a equipe de desenvolvimento urbano do WRI começa a trabalhar com os mecanismos de financiamento relacionados à valorização imobiliária e como recuperar essa valorização para transformar em investimento público de infraestrutura. Para vermos o conceito DOTS virar realidade nas cidades, precisamos, antes de mais nada, de uma regulação urbana que dê as condições e os instrumentos para que ele aconteça. Isso vem depois de ter uma base que dá as condições, essa base é o Plano Diretor.

O conceito de planejamento urbano ainda é algo um pouco intangível para a maior parte da sociedade. De que maneira instrumentos como os Planos Diretores afetam o dia a dia das pessoas?

O Plano Diretor, através das leis de uso e ocupação do solo ou leis de parcelamento, por exemplo, depois outros desdobramentos que podem vir, define normas urbanísticas que devem ser seguidas por toda e qualquer construção que se faça dentro da cidade. Se a gente pensar que tudo que é construído na cidade atende a uma regra definida no Plano Diretor, o ambiente, o concreto, tudo que está construído no nosso entorno dentro de uma cidade teve influência do Plano Diretor, então, diferente de outros planos, ele tem uma influência direta no nosso cotidiano, nas coisas que enxergamos à nossa volta e na relação que temos com a cidade. Por ter uma influência tão direta na vida das pessoas, é fundamental que ele seja feito de forma participativa, que tenha a inclusão da maior parte possível de atores nas discussões. Isso é essencial e tem acontecido, de certa forma, na maior parte das cidades brasileiras.

Dentro dessa visão de que o Plano Diretor é definidor de um futuro da cidade, qual a importância dos governos, quando estão trabalhando nisso, terem uma visão para a cidade, que possa ser usada para dar vida a projetos em diversas áreas?

Sobre a questão estratégica e a visão de futuro da cidade contida no Plano Diretor existem dois problemas que podemos destacar. Um é quando o Plano Diretor é feito simplesmente pensando no regramento, nas normas, sem contar com uma visão estratégica, em que teremos como resultado uma regulação sem um objetivo futuro. Teremos uma normatização da cidade, mas sem induzir nenhum tipo de desenvolvimento. O outro problema são os Planos Diretores que são meramente estratégicos, definem questões de futuro, diretrizes, eixos de desenvolvimento ou polos dentro da cidade, mas não traduzem essa estratégia em normas e, assim, não se concretizam na cidade. O DOTS é inclusive uma das formas que temos trabalhado para dar alguma tangibilidade a essas estratégias. Dentro de um Plano Diretor podemos ter várias estratégias e o DOTS é uma delas, que é vincular o desenvolvimento da cidade à infraestrutura de transporte. Nos últimos anos, buscamos formas de escolher uma estratégia como o DOTS e traduzir em algo que vira uma regra, uma lei, e se concretiza no território.



SAIBA MAIS
DOTS nos Planos Diretores: catalisando a transformação urbana
Medidas de sustentabilidade podem gerar economia para famílias em programas de habitação social
Minha Casa, Minha Vida: construir perto do centro é sinônimo de economia e qualidade de vida
 


Costuma-se dizer que há dinheiro disponível para obras de infraestrutura urbana, o que faltam são bons projetos. No caso brasileiro, onde estão as maiores dificuldades?

A gente pode tratar essa ideia de que existe o dinheiro de várias formas. Os municípios vão defender que não têm recursos. Na verdade, o que se fala é que há dinheiro disponível no mercado, existe interesse de investimento, mas não existem as oportunidades mais adequadas. No caso brasileiro, as principais barreiras vão estar vinculadas a projetos que considerem a viabilidade econômica desde o princípio. Existem problemas regulatórios que trazem restrições ao investimento e existem problemas relacionados ao planejamento. Há instrumentos de financiamento que podem ser viabilizados por regulação urbana e que estão previstos, por exemplo, no Estatuto da Cidade, mas não são aplicados. Existem muitas alternativas de como financiar, o que precisa é uma aproximação maior entre quem quer financiar e quem está fazendo os projetos. Aproximar essas necessidades para alinhar um bom projeto para a cidade que se torne também um bom projeto para quem financia.

É preciso fazer com que projetos urbanos economicamente atrativos sejam também sustentáveis, promovam a equidade e a qualidade de vida da população?

Exato. A gente tem que pensar que a lucratividade de um projeto está vinculada à perpetuação no tempo. Um projeto que dá lucratividade em um ano talvez não seja tão lucrativo quando um que dá ao longo de dez anos. Então, a sustentabilidade pode trazer um benefício financeiro também. O problema muitas vezes é que essa lucratividade não está ligada ao mesmo ator.

Também há casos em que os projetos são lucrativos, mas não necessariamente são tão bons para a sociedade.

Isso foi o que vimos, por exemplo, no Minha Casa Minha Vida. E nem estamos falando de lucros exorbitantes. Do ponto de vista financeiro, é um modelo que conseguiu casar bem uma necessidade de habitação em conjunção com o mercado da construção, que queria produzir habitação. O governo federal financia a construção, os construtores ganham dinheiro, e quem precisa de casa ganha casa. Mas no longo prazo, mesmo no médio, essa riqueza gerada passa a se transformar em um passivo econômico. Normalmente, são escolhidos os terrenos mais baratos, longe do centro urbano, e o município acaba tendo que levar nova infraestrutura viária, construir equipamentos públicos comunitários como escolas, unidades de saúde e de assistência social, além de expandir as linhas de transporte coletivo. Ao incluirmos os custos para manter e operar esses novos serviços, fica claro que esse modelo não é o mais sustentável.  

Como a revisão dos Planos Diretores que deve ocorrer nos próximos anos é uma oportunidade de implementar várias medidas para impulsionar a sustentabilidade?

O Brasil vai ter, em dois ou três anos, uma nova geração de Planos Diretores nas suas cidades. E essa é uma grande oportunidade de os municípios incluírem soluções inovadoras, sustentáveis e ousadas do ponto de vista do financiamento e do urbanismo em seus Planos Diretores. O WRI está ajudando os municípios a fazer isso através da estratégia DOTS, mostrando como incluir uma estratégia territorial dentro de Planos Diretores usando instrumentos que vão realmente viabilizar eles, seja do ponto de vista do desenho urbano, seja de como realmente tornar aquilo realidade. Estamos trabalhando para tornar concreta uma ideia de cidade nos Planos Diretores.