Mudar a maneira de pensar e desenhar as vias – um padrão há tanto estabelecido e enraizado nas cidades brasileiras – é o desafio a que se propõem as cidades que integram a Rede Nacional para a Mobilidade de Baixo Carbono, criada pelo WRI Brasil em parceria com a Frente Nacional de Prefeitos (FNP). Para fazer isso, essas cidades trabalham para implementar seus projetos de Ruas Completas, um modelo de rua que busca inverter a lógica de priorização, colocando a circulação das pessoas antes da dos carros, e criar um espaço mais democrático e acessível para todos os diferentes usuários, respeitando os usos já existentes e o contexto local.

Atualmente, as cidades que trabalham em seus projetos sabem que os desafios são muitos e podem variar. Do financiamento à resistência da população, é preciso atuar em diversas frentes para garantir o sucesso de uma Rua Completa. Um dos fatores que podem ajudar na implementação de um projeto é o aspecto normativo. Como seria uma política para Ruas Completas?

Conversamos a respeito com Andrea Teichmann Vizzoto e Rozangela Motiska Bertolo, advogadas e consultoras em políticas públicas de mobilidade e acessibilidade. Conforme apontam as especialistas, o papel de uma política de Ruas Completas seria o de compilar normas gerais e elementos já existentes na legislação, a fim de oferecer um direcionamento às cidades – que posteriormente precisarão adaptar e/ou complementar esse documento conforme as necessidades e o contexto de cada futura rua completa.

Andrea e Rozangela participaram da 74ª Reunião Geral da FNP, no final de novembro em São Caetano do Sul, e conversaram com os representantes das cidades da Rede Nacional para a Mobilidade de Baixo Carbono sobre os desafios e oportunidades de uma política para Ruas Completas (assista aqui).

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Andrea e Rozangela na 74ª Reunião Geral da FNP (Foto: Gabriela Gonçalves e Vado Silva/FNP)

 

O Brasil tem a Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), que já estabelece a prioridade de pedestres, ciclistas e transporte coletivo. Que pontos um projeto de lei para Ruas Completas deve contemplar e como deve conversar com a PNMU?

Andrea – Legislação nós temos. Nosso desafio é fazer com que o planejamento, seja em ruas completas ou qualquer outro setor, se encaixe com a gestão. Que a legislação e a gestão andem juntas. Entendemos que a legislação existente hoje, aliada a essa complementação que pretendemos sugerir, desenham o quadro legal necessário para projetos de Ruas Completas. Os elementos que compõem as Ruas Completas já estão nas legislações existentes, basta separá-los e identifica-los, e isso nós temos como fazer.

Rozangela – O que constatamos em nossos estudos é que o conjunto de legislações que temos no Brasil, do Código de Trânsito, passando pelas leis de acessibilidade até a PNMU, é compatível com o projeto de Ruas Completas. Dada essa compatibilidade e o cenário atual, com a obrigatoriedade de os municípios desenvolverem seus planos de mobilidade, observamos que esse conjunto de elementos que fazem parte do conceito de Ruas Completas já podem ser inseridos no texto normativo. Isso pode ser feito no Plano de Mobilidade, no Plano Diretor ou até mesmo como uma lei autônoma, no caso dos municípios menores que contam com uma estrutura mais enxuta. Ou seja, a ideia não é criar um modelo único, replicável em qualquer cidade, mas estruturar uma proposta que sirva de subsídio para discussão e adaptação à realidade local de cada município e, a partir disso, venha a se tornar um instrumento normativo.

 

As ruas completas podem ter diferentes elementos, diferentes “tamanhos”, variar conforme o contexto de cada local. Como a legislação deve considerar essas diferenças?

Andrea – É justamente esse o desafio. Criar um projeto “coringa” que dê conta de tantas realidades distintas – um projeto que consiga abarcar as diferentes especificidades de municípios pequenos, médios e grandes e também o aspecto legislativo, porque, como a Rozangela disse, esse projeto de lei pode ser uma lei isolada e específica ou pode ser um capítulo dentro de um plano já existente na cidade. Por isso chamamos de “projeto coringa”. Um projeto de lei não vai determinar uma rua completa, vai delineá-la de uma forma um tanto genérica. Ou seja, o desenho geral estará traçado, mas o “recheio” cada município determinará conforme suas características e necessidades locais.

Rozangela – A ideia é ter uma norma com um grau de generalidade que permita essa flexibilização, para que cada município possa adaptá-la às suas necessidades. Nosso objetivo foi reunir os elementos conceituais presentes na lei, para que as cidades os integrem ao seu sistema viário, estabelecendo medidas, larguras e requisitos que façam sentido em sua realidade.

 

Vocês comentaram sobre os diversos casos de planos que são anulados por não contemplarem a participação popular. Isso pode acontecer com um projeto de lei de Ruas Completas? Comentem a importância de se ouvir as pessoas.

Andrea – Na etapa em que estamos atualmente esse risco ainda não existe, porque ainda estamos trabalhando com uma minuta. Mas no momento em que o município adotar esse projeto de lei, com as adaptações necessárias à sua realidade, obrigatoriamente terá de utilizar um instrumento de participação. Sugere-se que seja uma audiência pública, para que haja debate, para trazer a população à tomada de decisão. Isso é legitimar o processo. Envolver a população para que no futuro a cidade tenha apoiadores, parceiros e não opositores. Se o município for capaz de mostrar às pessoas o que se deseja fazer, explicando os objetivos e o processo que será adotado, evitará possíveis conflitos.

Rozangela – Ao apresentar uma solução nova, é natural que haja desconfiança – vai mudar a fachada, vai atrapalhar o comércio, vai reduzir o movimento. Por isso esse trabalho anterior, de dialogar com a comunidade que será impactada, é tão importante. É o que permite que o projeto siga adiante. Os instrumentos de participação popular também já estão previstos em lei. É preciso aplicá-los de forma efetiva.

 

Uma vez estabelecido um projeto de lei de Ruas Completas, o que se pode esperar? Pode ser um incentivo para a construção de mais ruas que adotem esse conceito?

Andrea – Um projeto de lei é um elemento entre vários nesse processo de mudança de paradigma. [A mudança] também envolve a qualificação do corpo técnico do município, o diálogo com a sociedade, a conscientização sobre a necessidade de mudarmos os padrões de mobilidade atuais. Com certeza ajuda contar com um projeto de lei, mas ele é um elemento dentro de um conjunto.

Rozangela – Não podemos pensar que um projeto de lei será a solução de todos os problemas. É uma etapa da construção. Até porque não existe uma solução única para a mobilidade urbana, existem soluções diversas. E para todas é fundamental uma boa gestão – a vontade política, a disposição de mudar e mobilizar as pessoas e os recursos necessários para que essa mudança aconteça. Ter o projeto de lei é uma etapa importante, mas sozinho esse projeto não é suficiente, não garante a continuidade e a execução.