Está lá, registrado no Estatuto das Cidades: "a garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações". Sejam elas parte das presentes ou das futuras gerações, as crianças também têm o direito garantido pela Constituição de usufruir dos meios urbanos. No entanto, elas estão cada vez mais privadas do espaço público, vítimas de cidades pouco preparadas para recebê-las e de uma superproteção adulta, justificada pela percepção da redução da segurança nas ruas e aumento no número de acidentes de trânsito. Muitos veem a cidade pela janela dos carros e não conseguem elaborar um mapa mental que relaciona um ponto a outro da cidade e que contribui para dar sentido à vida urbana.

Trabalhar esse sentido de pertencimento desde cedo significa tornar realidade desde a infância o direito à cidade em todos os aspectos. Uma cidade segura para as crianças é também uma cidade segura para todos, e estimular a escolha por modos ativos de transporte pode gerar transformações não só na mobilidade urbana, mas também na área da saúde, ao prevenir doenças que afetam milhões de crianças, como diabetes infantil, obesidade, insuficiência de vitamina D e Transtorno do Déficit de Atenção. Para isso, é preciso que o desenho das cidades também contribua com esse objetivo, aumentando a segurança de todos e estimulando uma maior vivência dos espaços.

O WRI Brasil tem trabalhado para incentivar transformações nos meios urbanos que beneficiem os mais jovens e, consequentemente, a todos. Um dos trabalhos nesse sentido está sendo realizado na Zona 40 em São Miguel Paulista. Além de contribuir com o projeto de redesenho urbano na região, em 2016 o WRI realizou uma pesquisa de origem-destino em três escolas do bairro, que totalizam mais de 3,5 mil alunos: Escola Municipal e Ensino Fundamental (EMEF) Arquiteto Luis Saia, EMEF Darcy Ribeiro e Escola Estadual D.Pedro I. O trabalho foi realizado em parceria com a arquiteta, urbanista e especialista em mobilidade e crianças Irene Quintáns e com o jornalista Alexandre Pelegi.

Descobrir, em primeiro lugar, como os alunos se deslocam e, em seguida, analisar suas percepções é fundamental para entender como eles percebem a cidade e quais dificuldades enfrentam. Por isso, foi aplicada uma pesquisa em cada um dos centros escolares selecionados, definindo uma sala por ano escolar em cada uma. Os gráficos abaixo mostram que na Escola Estadual D.Pedro I, que tem alunos até o Ensino Médio, a maior parte deles usa o transporte público. Já nas outras duas escolas de Ensino Fundamental, a maior parte vai a pé ou utiliza o transporte escolar.

 

distribuição modal escolas

 

Gráfico mostra a distribuição modal entre as três escolas analisadas (Fonte: WRI Brasil)

 

 

Os alunos também foram perguntados sobre como gostariam de ir para a escola. No caso da escola Arquiteto Luis Saia, em que a maioria se desloca a pé e pelo transporte escolar, a maior parte disse preferir usar o transporte escolar (32,3%), enquanto no caso da escola Darcy Ribeiro, a maioria respondeu que gostaria de usar o carro (31,4%). Quando perguntadas sobre o trânsito e o ambiente urbano no seu caminho de ida e volta para a escola, dois aspectos se destacaram: as calçadas ruins apareceram em mais de 60% das respostas e o tempo de travessia curto em quase metade delas.

Ao responder sobre os medos no trajeto para os estudos, a resposta mais recorrente foi o medo ser assaltado, seguida pelo receio de ser atropelado – é importante lembrar que São Miguel tem alto índice de mortes no trânsito. Outra pista sobre os problemas da região veio depois da pergunta sobre as dificuldades de ir a pé à escola: a maioria citou a insegurança, em segundo lugar ficaram os transtornos quando chove e, em terceiro, o perigo para atravessar as ruas. "Nós, adultos, temos uma falsa impressão de que as crianças não conhecem a realidade. Elas têm uma perspectiva diferente da nossa, mas também muito válida, que faz sentido no contexto da cidade. Elas também deveriam ser escutadas como cidadãs", lembra Daniely Votto, gerente de Governança Urbana do WRI Brasil Cidades Sustentáveis.

Em São Miguel Paulista, diferente de outras regiões de maior poder aquisitivo na capital paulista, há um índice menor de alunos que se deslocam de carro até a escola – eles usam o transporte escolar, caminham com pais e avós ou tem idade suficiente para usar o transporte coletivo. Mas, como mostram os resultados da pesquisa, também há anseios por conforto, como calçadas mais seguras, melhores locais para atravessar as ruas, segurança suficiente para pedalar até a escola. Essas e outras medidas poderiam servir de estímulo para que elas se sentissem ainda mais encorajadas a aderir ao transporte ativo. "Criar pontes de contato em todo o entorno do ambiente escolar também é muito importante não apenas para a criança, mas por que isso reverbera em toda a comunidade. Essas conexões entre a casa e a escola, com a igreja, a padaria e outros pontos pelo caminho, ajudam a formar a vida urbana", reforça Daniely.

Também no ano passado, o WRI Brasil Cidades Sustentáveis apresentou um documento com orientações para políticas públicas ao Ministério das Cidades. Entre as recomendações para se trabalhar a mobilidade nas escolas brasileiras, foram destacadas três:

Desenvolver uma nova visão de cidade: pensar áreas de segurança escolar requer uma dimensão maior do que a elaboração de manuais técnicos e legislações específicas. Houve, no Brasil, um significativo avanço nos marcos legais, o que, no entanto, não foi acompanhado pelo envolvimento das comunidades escolares em um debate profundo sobre o desenho das cidades. Para prevenir e reduzir de forma significativa os acidentes no entorno das escolas, são necessários mais do que projetos de sinalização, ou campanhas que exijam respeito e atenção de motoristas e pedestres ou que cobrem fiscalização intensiva e permanente. É necessário que se faça uso de oficinas para educar as crianças sobre como interagir com a cidade de forma segura e como elas podem colaborar para a criação de centros urbanos mais saudáveis.

Envolver diferentes atores: é essencial que pais, alunos e professores participem constantemente na busca de medidas básicas para redução dos principais fatores causadores de acidentes de trânsito, mas também pressionem autoridades para que se envolvam decisivamente em um redesenho urbano que dê sentido e consequência a esse esforço. A cidade deve ser desenhada e construída tendo como marco essencial a segurança das crianças e a liberação do maior espaço possível às pessoas. Uma cidade em que as crianças são expulsas de espaços que deveriam ser naturalmente seus (um espaço para conviver e brincar) é uma cidade doente.

Ampliar a visão de segurança viária: para que um ambiente urbano seja seguro, é preciso mais do que simplesmente extinguir os acidentes. Projetos de segurança viária focados exclusivamente em dados de acidentes de trânsito não contemplam a complexidade das cidades e seus diversos riscos. É necessário incluir dados mais elaborados no estudo da segurança viária que contemplem a interação entre os diversos modos de transporte, como pesquisas origem-destino, auditorias e rotas preferenciais para ir à escola.