Uma versão deste artigo foi originalmente publicada em Nutrition Connect.


A pandemia de Covid-19 suscitou reflexões e chamou a atenção para o sistema global de alimentos. A ciência ainda está incerta a esse respeito, mas é possível que a pandemia tenha surgido de uma fonte animal em mercados úmidos. Independentemente da fonte, contudo, o impacto do vírus na segurança alimentar e nutricional é alto: antes da crise, as estimativas apontavam que 820 milhões de pessoas em todo o mundo passavam fome. Agora, estima-se que outras 130 milhões além dessas também podem vir a sofrer algum nível de fome em decorrência da pandemia, além de 135 milhões que já beiram a inanição.

Mesmo em países desenvolvidos como os Estados Unidos, notícias diárias mostram cenas de cultivos apodrecendo nos campos, enquanto milhares de pessoas fazem filas para receber doações de alimentos devido à perda de renda e a falhas de mercado. Ainda mais sérios são os problemas nos países em desenvolvimento, onde muitos agricultores não conseguem vender suas colheitas e os alimentos acabam perdidos, porque os canais de comercialização foram interrompidos – desperdiçando um bem precioso e ameaçando 500 milhões de fazendas de pequenos agricultores e bilhões de vidas que dependem deles em todo o mundo. Uma tragédia humana está se desenrolando diante de nossos olhos.

Não podemos – não devemos – deixar isso acontecer. Ações imediatas e concretas para criar um sistema de alimentos e uso da terra mais justo, nutritivo, sustentável e resiliente devem estar no centro da resposta do mundo à Covid-19. Essa é, acima de tudo, uma prioridade humanitária urgente, que exige medidas para apoiar os agricultores em crise, garantindo que os produtos cheguem aos mercados e levando comida para as pessoas vulneráveis nas cidades e nos campos de refugiados. Há, ainda, uma chance comum para todos os países: plantar as sementes de uma recuperação mais sustentável e de longo prazo, reduzindo a probabilidade de futuras pandemias e melhorando a resiliência das sociedades. O mundo deve “recuperar melhor” depois da crise, e nós devemos fazer o mesmo.

Três maneiras de voltar a crescer melhor

A Coalizão de Alimentos e Uso da Terra (FOLU, na sigla em inglês), que inclui o WRI e a Aliança Global para Melhor Nutrição (GAIN, na sigla em inglês), emitiu uma chamada à ação a fim de enfrentar a crise e permitir que essa recuperação comece.

Primeiro, os governos precisam manter o comércio aberto e o fornecimento de alimentos fluindo em todo mundo. Os principais países exportadores devem deixar claro que continuarão a abastecer os mercados e clientes internacionais. Os importadores devem manter portos e fronteiras abertos e continuar garantindo a segurança alimentar de suas populações. Uma reunião extraordinária dos Ministros da Agricultura do G20 e instituições internacionais, realizada em 21 de abril, pediu que todos os países mantenham seus mercados de comércio agrícola abertos, até agora com relativo sucesso. O Vietnã, terceiro maior exportador de arroz, suspendeu a proibição temporária de exportação e ajudou a estabilizar os preços. Devemos evitar a todo custo o comportamento da crise alimentar de 2007-2008, quando um terço dos países restringiu o comércio e 150 milhões de pessoas caíram na pobreza. Há comida suficiente no mundo, mas precisamos garantir que ela seja distribuída de maneira justa e acessível. A China deu um exemplo poderoso de como garantir o acesso ao mercado por meio de sua política de canais verdes, permitindo que os alimentos sejam distribuídos rapidamente tanto nas províncias quanto nos portos.

Em segundo lugar, com ajuda dos setores privado e filantrópico, os governos precisam adotar medidas urgentes para fortalecer e expandir seus programas de alimentação e nutrição e criar redes de segurança de renda para proteção social. Os centros Anganwadi, na Índia, são um exemplo disso, assim como a rede colombiana “Colômbia cuida da Colômbia”, que garante o fornecimento de alimentos a famílias vulneráveis. A comunidade internacional – agências multilaterais e bilaterais – deve mobilizar de forma ágil recursos adicionais significativos para apoiar os países de baixa renda, especialmente na África Subsaariana, a fim de garantir que sejam capazes de produzir e importar os alimentos necessários para suas populações.

Terceiro ponto: governos de todo o mundo devem garantir que o setor de alimentos e uso da terra seja devidamente financiado com o capital e os incentivos de longo prazo necessários para recompensar o fornecimento de alimentos nutritivos e acessíveis. O setor deve ser o pilar central de qualquer pacote de estímulo fiscal. Os investimentos devem se concentrar no aumento da resiliência e da diversidade das cadeias de suprimento, na redução de perda e desperdício alimentar, no desenvolvimento de sistemas alimentares regionais, na garantia de proteção social aos agricultores e comunidades rurais, acelerando uma maior digitalização e transparência em toda a cadeia de valor e reconstruindo o capital natural. Este último ponto não pode ser esquecido: não há resposta viável a longo prazo para a Covid-19 sem a proteção e a restauração dos ecossistemas críticos remanescentes no mundo e um esforço conjunto para conter o comércio de espécies selvagens.

As plataformas da FOLU na Austrália, China, Colômbia, Etiópia, Índia, Indonésia, países nórdicos e Reino Unido estão se envolvendo com os principais tomadores de decisão para promover esses argumentos. Nos casos apropriados, estamos argumentando que os países devem considerar o estabelecimento de uma força-tarefa interdisciplinar para orientar a resposta à Covid-19 nessa direção, assegurando que o melhor do conhecimento sobre alimentação, nutrição e uso da terra esteja no centro da resposta dos governos para a pandemia. O papel dos ministérios da fazenda nessas deliberações é primordial. Também defendemos a necessidade de que esse pensamento esteja no centro da resposta das instituições internacionais à pandemia.

Plantando novas sementes para os sistemas alimentar e agrícola

Os próximos dois a três anos testemunharão a maior injeção de recursos públicos na economia mundial da história – estima-se que entre US$ 10 trilhões e US$ 20 trilhões. Esse período provavelmente será seguido por um de políticas fiscais mais rígidas à medida que as dívidas forem pagas. O objetivo é proteger as pessoas, restaurar os meios de subsistência e reconstruir a economia após o que se espera ser a pior crise desde a Grande Depressão. Os setores de nutrição, alimentos e uso da terra devem ser centrais nas estratégias de governos em todo o mundo. Um conjunto de intervenções que vão desde a injeção imediata de recursos em programas nutricionais até investimentos para o crescimento da produtividade agrícola a longo prazo, bem como para a proteção e restauração de ecossistemas, pode ser um presente sem precedentes para agricultores, consumidores e o sistema global de alimentos.

Legisladores de todos os lugares querem, com razão, restaurar os meios de subsistência e recuperar a economia. Nesse breve período à nossa frente, eles também podem redefinir a maneira como operam os sistemas alimentar e agrícola. É essencial que não reconstruamos os mesmos sistemas desiguais, não inclusivos, arriscados e de alto carbono do passado – nem sistemas que levaram a taxas tão altas de desnutrição, obesidade e perda de biodiversidade. Também devemos voltar a crescer melhor.

Corrigir as distorções do sistema alimentar será crucial para garantir uma recuperação resiliente em todo o mundo, criando o potencial para milhões de novos empregos, redução da fome, maior segurança alimentar e melhor gerenciamento dos recursos naturais dos quais todos dependemos. A Covid-19 é uma demonstração única das patologias e fragilidade do sistema global de alimentos e uso da terra. Que este seja também o momento em que começaremos a colocar esse sistema em um caminho mais saudável e sustentável.