Por muito tempo, a urbanização foi inimiga do meio ambiente. Mas a recíproca não é verdadeira: a natureza é um importante indicador da qualidade de vida urbana. As cidades têm de fazer as pazes com a natureza, para o bem das pessoas e para sua própria sustentabilidade e resiliência. A paisagista urbana Cecília Polacow Herzog dedicou as últimas duas décadas a pesquisar caminhos para essa reconciliação.

Cecília é uma das referências no estudo de soluções baseadas na natureza no Brasil. Atualmente, além de dar aulas na graduação e na pós-graduação da PUC-Rio, a paisagista atua como consultora em projetos que buscam resgatar a biodiversidade nas cidades e integrar soluções baseadas na natureza ao planejamento e aos projetos urbanos. É um campo que ganhou impulso nos últimos anos, com soluções baseadas na natureza – como jardins de chuva, parques lineares e jardins filtrantes – sendo implementadas em algumas cidades brasileiras.

O reconhecimento da natureza como parte fundamental das cidades não é nova. Uma das inspirações de Cecília, o paisagista Frederick Law Olmsted projetou o Central Park de Nova York e o Emerald Necklace em Boston, ambos nos Estados Unidos, para contrapor a perda de qualidade de vida e a poluição das águas nas metrópoles industriais do século 19. "Também nessa época, houve o replantio da floresta do maciço da Tijuca, porque já não tinha água no Rio de Janeiro, e visando este serviço ecossistêmico essencial, iniciou-se o plantio de 100 mil mudas", conta a paisagista, que mora no Rio mas está retirada em seu sítio durante o período de isolamento social provocado pela pandemia da Covid-19.

Recuperar e conectar os sistemas naturais é fundamental para proteger a água, o verde e a vida tanto fora quanto dentro das cidades. A infraestrutura sustentável desponta como parte do caminho de recuperação das economias globais que sofreram um novo abalo com a pandemia da Covid-19. "A Europa está na frente com seu Green Deal, que se tornou um dos focos para o continente sair da crise. Com isso, as soluções baseadas na natureza estão ganhando uma potência muito maior", afirma.

Neste momento desafiador, temos a chance de incluir na retomada econômica a inadiável reconciliação com o meio ambiente de que também somos parte. Na entrevista a seguir, Cecília compartilha um pouco do seu conhecimento e aponta caminhos para que as cidades voltem a ver a natureza como aliada, e não como barreira ao desenvolvimento. 

Que consequências a desconexão com a natureza e a priorização de infraestrutura cinza, baseada em canalização e retificação de rios, pavimentação asfáltica, grandes viadutos, trouxe para as cidades de hoje?

retrato de Cecilia Herzog

A paisagista Cecília P. Herzog

Cecília Herzog - Não só as cidades, todo nosso sistema é baseado em obras de engenharia pesada. Nos Estados Unidos, engenheiros canalizaram o rio Mississippi, e já faz tempo que eles vêm explodindo os diques que fizeram, porque mataram os rios e isso tem muitas consequências. Toda primavera, quando ocorre o degelo ao norte, é um desastre nas áreas do entorno do Mississippi, porque o rio abrange uma paisagem muito grande e foi retificado para que se pudesse ocupar as margens com cidades e com agricultura. Um pedaço da cidade de Memphis se deixou ser inundado porque se perdia sempre, todo ano as perdas são enormes.

O século 20 é marcado por esse tipo de desenvolvimento. A economia americana, cujo modelo se expandiu para o mundo inteiro, é rodoviarista e higienista. Isso vem do século 19, com médicos sanitaristas, passa para a cidade e para engenharia. Começou com o objetivo de controlar doenças, mas acabou causando uma grande doença planetária, porque eliminou ecosssistemas e transformou os fluxos naturais em que as pessoas tinham contato com a natureza.

A saúde humana depende da qualidade ambiental das cidades: você precisa de ar limpo, água limpa. A mortalidade por conta de poluição é muito alta, fora outros impactos mais difíceis de contabilizar. Não é só uma questão de tornar a cidade mais resiliente frente aos desafios trazidos pelas mudanças climáticas, com chuvas cada vez mais fortes e intensas, frequentes ondas de calor, escassez de água, problema de alimentos. Estudos vários mostram que quando você reintroduz natureza na cidade, se reduz estresse, criminalidade, você melhora a qualidade de vida em geral.

O que significa dizer que as soluções baseadas na natureza são multifuncionais e seguras para falhar?

vegetação

Tratamento de efluentes por jardins filtrantes em fábrica de cosméticos no Rio de Janeiro (Foto: Cecília P. Herzog)

A urbanização do século 20 é monofuncional, ou ela leva carro, ou ela conduz água. Você quer ficar livre da água, porém basta pouca chuva para já ter problemas. As soluções baseadas na natureza são multifuncionais, oferecem diversos serviços ecossistêmicos. Por exemplo, acomodação das águas: vamos fazer abertura de espaços como jardins de chuva para acomodação de água cujo serviço ecossistêmico principal é o manejo de água. Ao mesmo tempo, recarrega aquífero e melhora a qualidade da água, do ar, capta carbono, resolve a poluição difusa. Tem cobenefícios múltiplos que vêm dessas soluções.

Essa visão da "prestação de serviços" é muito antropocêntrica, mas é uma maneira que foi encontrada para ter uma valoração, para que a natureza não seja destruída. A gente depende completamente da natureza para viver, e a gente depende das árvores primeiramente. Sem árvore não tem água, ocorre desertificação. A árvore nos oferece alimento, energia, sombra, sequestra CO2 e libera o oxigênio que a gente respira, filtra o ar, é barreira sonora. Tem vários benefícios que, se bem utilizados, reintroduzindo as árvores na cidade, transformam o ambiente urbano de fato.

Agora, sobre o "seguro para falhar". Quando se pensa em soluções multifuncionais, com diversas soluções aplicadas na mesma área, buscam-se sistemas que sejam redundantes, em que, se uma parte no sistema falha, entra outro componente que mantém o funcionamento do sistema. Para isso é preciso planejamento e projetos integrados e sistêmicos. Pensando nos reservatórios de jardins de chuva, conforme ele vai enchendo de água, um reservatório passa para o outro, conduz a água até uma área de acomodação, um lago de retenção. Um teto verde vai segurar mais água, na hora de extravasar, a água vai ser conduzida para a calçada, que tem um canteiro pluvial. Então você vai ter vários componentes que vão fazer com que haja redundância.

Em cidades brasileiras como São Paulo, construídas de forma desconectada, cinza e impermeável e que hoje enfrentam problemas recorrentes com inundações, o que se pode fazer agora que o ambiente já está construído?

foto do córrego Cheonggyecheon em Seul

Seul antes e depois da renaturalização do córrego Cheonggyecheon (Foto: NACTO/Global Street Design Guide)

É uma questão de priorização. Adoro o caso de Seul. A Coreia do Sul está fazendo renaturalização das quatro bacias hidrográficas há muito tempo, é um país com 51 milhões de habitantes e espaço exíguo de terra. Seul está se transformando desde a década de 1980. Estive em Seul no começo da década de 1990 e detestei, fui trabalhar e tive que mudar de hotel porque o trânsito era insuportável – São Paulo era brincadeira perto de Seul. Quando comecei a pesquisar soluções baseadas na natureza, topei com Seul como um caso emblemático, porque eles tiraram um viaduto e destamparam um córrego que estava por baixo do viaduto, um projeto incrível de 5,84 quilômetros de extensão, que envolveu um trabalho interdisciplinar. Fizeram uma megaobra que mudou a cidade com um custo ridículo se comparado às nossas obras, que são as mais caras do mundo e não deixam nenhum legado. O Rio de Janeiro é um exemplo: a cidade está numa situação muito complicada, nem Copa do Mundo, nem Olimpíada deixaram legado algum.

Seul aproveitou as Olimpíadas, fez um Parque Olímpico enorme em uma área degradada, que era fruto de seu período de crescimento a qualquer custo. Na Copa do Mundo, fizeram cinco parques, plantados sobre lixões abandonados na margem do rio. Hoje tem cinco parques, um tremendo lago na beira do rio que filtra a água com vegetação. O que me levou de volta para Seul foi a retirada desse viaduto. Chegou-se à conclusão de que viadutos têm vida útil de 50 anos. Toda obra de engenharia pesada envelhece e demanda muita manutenção. Seul então começou a tirar os viadutos, desativar, transformar em parque. E o primeiro parque foi este, que sai do centrão da cidade e se estende até uma área mais natural, onde tem um alagado construído gigantesco e os wetlands que foram recuperados.

homem bebendo água de córrego em Seul

Homem bebe água e crianças brincam no córrego Cheonggyecheon: grande obra de infraestrutura verde transformou região de Seul (Foto: Cecília P. Herzog)

O córrego original, que é um marco histórico da cidade, secou por conta da urbanização, por isso foi desenvolvido um sistema de captação de água do principal rio, Han. O parque começa no coração da cidade, uma parte mais urbanizada. Sai dessa parte mais urbanizada, mineralizada, dura, e fica mais natural à medida que sai do centro. Fotografei um homem bebendo água nesse córrego, as crianças brincando na água (veja ao lado). O córrego fica 5 metros abaixo do nível da rua, acomoda água de grandes chuvas, não tem mais alagamento na cidade, e lá eles têm os tufões, chuvas torrenciais. Então tem um valor incrível. Seul saiu de uma cidade infernal para uma cidade celestial.

Você comentou que soluções baseadas na natureza são mais baratas do que a infraestrutura convencional. Quais as principais barreiras para adoção sistêmica de soluções baseadas na natureza nas cidades?

Tem uma barreira cultural gigantesca. Comecei como ativista mas fui dar aula porque vi que não adiantava falar se as pessoas não entendessem o que eu estava falando. Formei várias pessoas nessa área, coordeno uma pós-graduação. Claro que tem outras pessoas fazendo, tem o Labverde, na USP, que faz isso há muito tempo. Hoje tem engenheiros ecológicos, engenheiros formados com outra visão, de trabalhar com a natureza e não para controlar a natureza. É a primeira base para que a gente possa resolver os problemas, porque a gente não vai resolver os problemas com as mesmas técnicas que os causaram. Temos de ter outros conhecimentos, e hoje se tem.

Anos atrás, estive em Campinas e fui ver o que que a cidade estava fazendo de bom. Fomos visitar uns parques lineares em uma área carente da cidade, veio uma chuva torrencial. Quando passou, saímos para fazer as visitas, a cidade cheia d'água. Me mostraram a obra e falei, "vocês estão na margem do córrego natural botando gabião, por quê?". Quando a gente desce mais um pouco na obra, eles estavam enterrando o córrego! Neste mesmo ano, colaborei na organização de um seminário sobre soluções baseadas na natureza no congresso da Frente Nacional de Prefeitos em Niterói. Tinha Secretários de Meio Ambiente de várias cidades do Brasil. Na hora da discussão, perguntei ao secretário de Campinas sobre o que eu havia visto. Ele disse que a canalização havia sido decisão da Secretaria de Obras. Então você tem uma Secretaria do Meio Ambiente fazendo um trabalho bárbaro de renaturalizar, trazer natureza para cidade, melhorar parques em áreas carentes, fazer a reconexão dos córregos e rios e por conta de segurança hídrica, e tem uma Secretaria de Obras encanando rio. É uma loucura.

Uma das soluções possíveis é o que Barcelona tem hoje: uma agência de ecologia urbana que coordena as secretarias da cidade. Porque a ecologia urbana é o que determina a qualidade de vida. É uma mudança de visão da cidade: é preciso entender a cidade como um sistema composto de vários subsistemas que têm de estar funcionando juntos. Tem de haver uma coordenação que entenda a cidade como um grande sistema, e que se você mexe numa coisa aqui atrapalha outra ali, ou melhora. Como fazer essa essa conciliação? É complexo? É. Precisa ter gente capacitada, que consiga transitar por diversos sistemas para entender como eles interagem.

A pandemia tem tornado evidente o desafio da desigualdade nas cidades. Como conciliar a qualificação com soluções baseadas na natureza e o acesso para as pessoas mais vulneráveis?

É um aspecto fundamental. Em Campinas, mapearam as áreas mais vulneráveis e cruzaram com o que tinha de áreas verdes. Obviamente, viram que as áreas com menos renda têm menos árvores. Então privilegiaram os parques nessas áreas. Tiram as pessoas das áreas de risco na margens dos córregos, fazem os parques e realocam as pessoas nas proximidades.

Há instrumentos legais, como a reserva de um percentual para habitação social. Em Paris, cada bairro tem de ter 20% de habitação social. A cidade pega áreas com potencial, edifícios que possam ser convertidos em habitação social com incentivo da prefeitura, para que todos os bairros tenham pessoas de diversas rendas.

Claro que tem áreas com grande concentração de imigrantes, até porque muita gente vai morar onde vivem as pessoas com quem elas se relacionam. Anos atrás, quando a Barra da Tijuca começou a se expandir, a crescer, muita gente de áreas menos favorecidas que foi morar na Barra não aguentou. Porque não era o ambiente delas, não tinha os amigos dela. A zona norte de São Paulo hoje está cheia de torres iguaizinhas às do Jardins, para pessoas que não queriam morar nos Jardins por não se identificarem com aquele ambiente. Não adianta querer inserir a pessoa no ambiente que não é dela. Não tem uma resposta única, tem de dar opção para as pessoas, e não definir por elas.

Uma das bases de trabalhar com soluções baseadas na natureza é a cocriação, a coparticipação, a coprodução. Se isso não acontece, você não consegue fazer com que os projetos sejam de fato sustentáveis. Na hora que você insere as pessoas, você encontra soluções de dentro para fora. Necessariamente, a decisão tomada dentro do gabinete, dentro do escritório do urbanista, é uma decisão falha, porque ela não vai resolver as questões locais. Tem de chamar as pessoas à mesa, tem de educar as pessoas para terem capacidade de escolha. Se o córrego que passa na porta da casa dela está cheio de esgoto, fede, traz doença, ela vai querer tampar o córrego. Então você tem que dar a opção de ter água limpa na porta da casa, tirando o esgoto dali.

O que as cidades brasileiras podem fazer desde já para se conectar com a natureza?

praça com bastante vegetação

Praça da Nascente (SP), recuperada pelo coletivo Ocupe e Abrace (Foto: Cecília P. Herzog)

Tem muita coisa acontecendo de baixo para cima. São Paulo é um caso que eu adoro, levo alunos com frequência em viagens de estudo. Tem um movimento crescente de lideranças que começaram a transformar espaços públicos, a fazer visitas a rios ocultos, e isso tem chamado a atenção de muita gente. Plantio de floresta de bolso, tirar gramado e plantar floresta. Isso foi ganhando adesão e aumentando a conexão das pessoas com a natureza. Porque tem outra barreira importante, o sistema baseado em mercado imobiliário, grandes empreiteiras, cartéis de ônibus que dominam as cidades. Tem alta dificuldade de sair do modelo que a gente está, tem lobbies poderosos, com grande influência nas eleições. É muito mais difícil ter pessoas no topo que decidam [trabalhar por soluções baseadas na natureza], por conta desse sistema que tem o lucro acima de tudo.