Muitas coisas têm mudado nas cidades – algumas, felizmente, para melhor. Mais brasileiras e brasileiros passaram a ver a bicicleta como a melhor escolha para a mobilidade urbana, e 67% das pessoas trocariam seus carros ou motos por alternativas de transporte mais limpas. A avaliação da qualidade do ar entre a população é desanimadora, mas a consciência sobre as mudanças climáticas aumentou, e 92% das pessoas desejam ônibus elétricos em suas cidades.

Estes são alguns dos resultados da pesquisa Mobilidade de Baixas Emissões, Qualidade do Ar e Transição Energética no Brasil, lançada em dezembro pelo Instituto Clima e Sociedade (iCS). Pode ser um recorte otimista do estudo, que entrevistou 2 mil pessoas das cinco regiões do país no início de 2020, antes de a Covid-19 impactar os hábitos de deslocamento no país. Mas há, de fato, números abundantes a indicar que as temáticas do transporte sustentável, da mobilidade de baixo carbono e da qualidade do ar ganham força na sociedade – uma oportunidade para políticas públicas e medidas de estímulo que tornem as cidades mais sustentáveis, inclusivas e resilientes.

A importância de (melhorar) sistemas de ônibus

Segundo o levantamento do iCS, o ônibus é o principal meio de transporte em todas as regiões: é o meio mais utilizado no cotidiano por 42% da população em geral – chegando a 48% da população com renda de até 1,5 salário mínimo, e a 35% das pessoas com renda acima de cinco salários mínimos. Mais da metade (53%) dos moradores de regiões metropolitanas utiliza principalmente ônibus em seus deslocamentos cotidianos.

<p>gráfico mostra porcentagem dos entrevistados que tem cada meio como principal, mostrando que 42% dos entrevistados utilizam ônibus como principal meio de locomoção; 19% bicicleta; 14% carro; 7% carro por aplicativo; 7% carona, 5% metrô, 4% caminhada; 3% moto; e 1% trem.</p>

Apesar disso, a imagem do transporte coletivo sobre rodas reacende um alerta. O estudo recupera resultados de uma pesquisa feita em 2017 em parceria com o Instituto Escolhas. A comparação dos dois levantamentos mostra que aumentou nos últimos anos a associação espontânea do ônibus a termos negativos como “superlotação” (de 2% das pessoas para 8% em 2020), “ruim” (5% para 8%), “péssimo” (6% para 9%), “caos” (4% para 7%) e “caro” (2% para 4%).

Praticidade e conforto ainda são atrativos do carro

No caso do carro, destaca-se o aumento da associação de carro a conforto, de 11% das pessoas entrevistadas em 2017 para 14% em 2020.

Três em cada quatro pessoas afirmam possuir carro, moto ou morar com alguém que possua. Apesar disso, a parcela de pessoas que vê o carro como melhor opção caiu de 30% em 2017 para 19% em 2020, e a parcela de pessoas que pretende comprar um carro foi de 51% para 45%.

Quando as pessoas são questionadas sobre sua disposição a trocar o transporte individual por um meio de transporte mais limpo, uma boa surpresa: 67% disseram que sim. Entre as pessoas que não trocariam, os motivos principais foram conforto (26%) e praticidade (20%). “Isso mostra a importância de se garantir mais conforto e qualidade para os modos sustentáveis, em especial para os ônibus”, pondera Cristina Albuquerque, gerente de mobilidade do WRI Brasil.

Bicicleta, metrô e mobilidade elétrica em alta

A pesquisa do iCS traz outro dado que corrobora com a expectativa da população por mais conforto nos ônibus: 92% das pessoas dizem querer mais ônibus elétricos em suas cidades. Capitais como Santiago e Bogotá têm conseguido avançar na transição para frotas elétricas graças a modelos de contrato de concessão inovadores. Silenciosos, sem emissões e confortáveis, os veículos a bateria são bem avaliados pela população das capitais latino-americanas, e levantamento do WRI Brasil mostrou que o interesse por fabricantes no mercado brasileiro têm aumentado.

Outra referência para os ônibus urbanos é seu “primo” sobre trilhos. O metrô foi apontado como o melhor transporte para o dia a dia por 29% das pessoas – um aumento considerável em comparação aos 12% de 2017. Inspirados no metrô, sistemas de ônibus BRT são uma boa alternativa de transporte de massa para cidades que não tenham demanda para o metrô, contanto que incorporem os devidos princípios de qualidade e conforto em seu planejamento e operação.

A preferência por bicicletas também aumentou, de 16% para 27%, embora o estudo não aponte possíveis causas para essa variação – seria a infraestrutura cicloviária que foi ampliada em muitas cidades brasileiras nos últimos anos? Ou o contexto econômico adverso que fez as pessoas adotarem a bicicleta como alternativa a opções pagas como os ônibus?

Mais do que comemorado, esse aumento deve ser acompanhado de mais incentivo e melhorias na oferta de infraestrutura, como as que muitas cidades latinoamericanas implementaram em 2020 para viabilizar deslocamentos seguros durante a pandemia de Covid-19 e evitar a migração de usuários do transporte coletivo para carros e motos.

É o caso de Buenos Aires. Após identificar que 86% das mortes envolvendo ciclistas aconteciam fora da rede cicloviária, a capital portenha tem implementado ciclovias em avenidas que representam rotas mais demandadas pelos ciclistas. “A iniciativa combina a implementação de ciclovias em avenidas com a redução dos limites de velocidade, outro fator chave para oferecer maior segurança no deslocamento dos ciclistas”, salienta Ariadne Samios, coordenadora de Mobilidade Ativa do WRI Brasil.

Motocicletas em desaceleração?

A queda na popularidade das motocicletas, de 11% em 2017 para 9% em 2020, seria um bom sinal – não tivesse a pesquisa sido realizada antes da pandemia de Covid-19.

Motociclistas representam cerca de um terço das fatalidades no trânsito brasileiro e mais de 70% das indenizações do DPVAT. Nas últimas duas décadas, houve aumento expressivo da frota de motocicletas no país, e a diminuição de popularidade apontada pelo estudo poderia ser um importante indicador do início de reversão desta tendência.

Quase um ano após a chegada da Covid-19 ao Brasil, não é o que está acontecendo. Fatores como a crise no transporte coletivo, o medo de contágio e o aumento dos aplicativos de entrega parecem estar gerando um novo aumento na compra de motocicletas, que poderia refletir em mais mortes no trânsito.

Mobilidade mais sustentável, ar mais limpo

A pesquisa também aponta uma mudança sensível na percepção das pessoas sobre combustíveis fósseis, qualidade do ar e mudanças climáticas. Em 2017, 81% das pessoas concordavam ao menos em parte que combustíveis fósseis eram poluentes – em 2020, são 86%. Combustíveis derivados do petróleo também eram a principal causa da mudança climática para 61% dos respondentes em 2017 – em 2020, para 75%.

A qualidade do ar é avaliada como "ruim/péssima" por 29% das pessoas – mas por 39% quando considerado apenas o grupo com renda até 1,5 salário mínimo. Sabemos que pessoas de renda mais baixa estão mais expostas à poluição do ar, mais um motivo para promover a mobilidade sustentável e de baixo carbono para tornar as cidades mais inclusivas e menos desiguais.

Carros foram apontados como a principal causa da poluição por 42% das pessoas, seguidos por indústrias (19%), ônibus (18%) e caminhões (11%). A percepção é compatível com estimativas do Banco de Dados de Emissões para a Pesquisa Atmosférica Global de que as principais fontes de poluentes atmosféricos no Brasil são o setor de transportes, os processos industriais e a queima de biomassa – o Brasil não dispõe de inventários completos e atualizados para referendar essa informação.

Percepção pública aponta para melhores políticas

A pesquisa do Instituto Clima e Sociedade (iCS) mostra mudanças positivas de percepção em comparação a quatro anos atrás e aponta caminho para transformar hábitos, estimular a mobilidade sustentável e promover cidades mais inclusivas, resilientes e saudáveis. Pesquisas como esta são um primeiro passo para compreender as percepções das pessoas que se deslocam pelas cidades.

É importante aprofundar esse conhecimento para elaborar ações que enfrentem tendências insustentáveis – como a queda na demanda por transporte coletivo – e estimulem as sustentáveis, como o aumento da popularidade da bicicleta. Um dos caminhos são pesquisas qualitativas como a realizada recentemente dentro das atividades do Programa QualiÔnibus.

Políticas públicas podem – e devem – contribuir para canalizar a receptividade da população a meios de transporte mais sustentáveis e menos poluentes ao mesmo tempo em que reduzem desigualdades. O estímulo à mobilidade ativa e ao transporte coletivo tem o papel importante de fortalecer alternativas limpas e democráticas, com benefícios à saúde, o clima, o meio ambiente e a economia.