Este texto foi publicado originalmente no The City Fix.


Frequentemente as crianças não recebem prioridade ou até são desconsideradas no planejamento urbano. Estima-se que morram até 500 crianças por dia no mundo em acidentes de trânsito. Outras milhares acabam feridas em decorrência das colisões ou desenvolvem traumas psicológicos que podem acompanhá-las por anos. Seja nas ruas ou em espaços públicos, o sentimento de insegurança ou desconforto desencoraja as crianças da atividade física ao ar livre – e isso em um momento em que 80% das crianças entre 11 e 17 anos não são fisicamente ativas e outras 38 milhões com até 5 cinco anos estão acima do peso ou obesas.

A pandemia de coronavírus ressaltou ainda mais a necessidade urgente de espaços ao ar livre seguros para as crianças, muitas das quais estão passando por um declínio significativo na saúde física e mental devido às restrições de atividades e socialização. Neste momento em que as cidades estão preocupadas com a recuperação da crise da Covid-19 e reavaliam as práticas do passado, deveriam considerar como atender melhor necessidades específicas das pessoas mais jovens nos espaços urbanos.

Mas como exatamente é uma cidade amigável para as crianças? É mais do que oferecer playgrounds. Trata-se de um compromisso em melhorar a vida das crianças ao garantir seus direitos humanos conforme constam na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e considerar suas necessidades na formulação de políticas públicas e nos processos de decisão.

Confira a seguir seis maneiras pelas quais as cidades podem fazer a diferença na vida de seus moradores mais jovens:

1. Muitas áreas verdes, acessíveis a todos

<p>parque público com crianças e pessoas</p>

O acesso a áreas verdes fortalece a saúde das crianças e as ajuda a liberar estresse e gastar energia. (Foto: Andreas Komodromos/Flickr)

Áreas verdes nos bairros podem ser decisivas para o bem-estar físico e mental. Crianças com acesso à natureza e áreas verdes apresentam níveis menores de estresse e agressividade, maior habilidade de concentração, melhor desempenho escolar e menor risco de desenvolver obesidade. Nas cidades, essas áreas também podem ajudar a melhorar a qualidade do ar local.

Para garantir espaços verdes e de recreação acessíveis e de qualidade, uma cidade amigável para as crianças protege as áreas verdes já existentes e impede oportunidades de novos empreendimentos que possam comprometer esses espaços.

2. Infraestrutura segura para caminhar e andar de bicicleta, especialmente no entorno das escolas

<p>uma criança em Dar es Salaam caminha até a escola</p>

Uma criança em Dar es Salaam caminha até a escola em uma área escolar redesenhada pela Amend, organização vencedora da edição 2018-2019 do Prêmio WRI Ross para Cidades. (Foto: Kyle LaFerriere/WRI)

Espaços pensados para pedestres e ciclistas possibilitam e estimulam a mobilidade ativa para todos e, em especial, instigam os atos de explorar e brincar entre as crianças. Em Gurugram, perto de Nova Déli, o WRI Índia percebeu que muitas crianças tinham medo de caminhar ou pedalar até a escola, apesar de sentirem vontade. Ao mesmo tempo, seus pais e professores vivem com altos níveis de estresse por conta dos deslocamentos diários de ida e volta à escola. Na Índia, morrem cerca de 60 mil crianças por ano em decorrência de acidentes de trânsito, muitas delas enquanto pedestres. Em todo o continente asiático, para cada fatalidade no trânsito, em torno de quatro crianças se tornam permanentemente inválidas.

É essencial garantir que as crianças tenham acesso seguro a locais estratégicos como escolas, parques e centros comunitários. Ruas seguras não apenas previnem mortes e ferimentos no trânsito como permitem que as crianças se sintam confortáveis, estimulando que se desloquem de forma ativa e independente.

O primeiro Prêmio WRI Ross para Cidades foi concedido à Amend por um júri independente devido à abordagem estratégica de segurança viária utilizada pela organização no entorno de escolas na cidade de Dar es Salaam, na Tanzânia. Estabelecendo como foco áreas com altas taxas de acidentes, conseguiram reduzir o número de feridos e mortes no trânsito de forma significativa a partir de intervenções simples na infraestrutura.

O WRI está implementando medidas similares na Índia e em outras partes do mundo, inclusive no Brasil. Na cidade de Rohtak, ferramentas de urbanismo tático como pinturas e barricadas criaram ilhas de refúgio e outras infraestruturas para aumentar a segurança dos pedestres. As mudanças ajudaram a reduzir a distância de travessia em 75%, diminuíram a velocidade de conversão dos motoristas e destinaram mais espaço das ruas aos pedestres. Essas intervenções rápidas em caráter piloto convenceram a administração municipal a se comprometer com a realização de mudanças permanentes.

Uma nova pesquisa realizada pela YouGov para a Child Health Initiative (Iniciativa da Saúde Infantil, em português), uma parceria global coordenada pela FIA Foundation, quase 75% das pessoas entrevistadas em 11 países são favoráveis a mudanças estruturais que melhorem a segurança viária para as crianças durante a pandemia de Covid-19. A Fia Foundation também lançou um novo guia, em parceria com a UNICEF, para ajudar escolas, legisladores e governos locais a criarem trajetos seguros para a escola durante e depois da pandemia.

3. Zonas de baixa velocidade

<p>>crianças pedalando em Uma zona de baixa velocidade recém-implementada no Distrito de Tunjuelito, em Bogotá</p>

Uma zona de baixa velocidade recém-implementada no Distrito de Tunjuelito, em Bogotá, ajudou a reduzir os acidentes de trânsito e a melhorar a experiência nos deslocamentos (Foto: Segundo Lopez/WRI)

Manter a velocidade dos veículos baixa é um fato decisivo para a segurança de todos os pedestres, mas especialmente das crianças. À medida que a velocidade aumenta, o campo de visão do motorista fica mais estreito e é mais difícil enxergar as crianças ou reagir a tempo a eventos repentinos, como uma delas correndo em direção à via.

No Distrito de Tunjuelito, em Bogotá (Colômbia), o WRI trabalhou em conjunto com a Secretaria Distrital de Mobilidade para implementar uma zona de 30 km/h em uma área já reconhecida pelas altas taxas de acidentes e mortes no trânsito. Em dezembro de 2018, também foram implementadas medidas de tráfego calmo com o uso de cones, fitas refletoras e pinturas para melhorar a visibilidade das novas infraestruturas, inclusive em torno de uma área escolar.

Como resultado das duas intervenções, o respeito aos novos limites de velocidade subiu de 29% para 86% na área como um todo e de 36% para 97% na frente da escola. Entre a comunidade, mais de 90% dos adultos e 86% dos menores afirmaram se sentir mais seguros em seus deslocamentos. Esses resultados também ajudaram a garantir o apoio da comunidade e da administração municipal para replicar as intervenções em outros bairros.

4. Ruas sem carro

<p>>Crianças caminham e andam de patinete em rua aberta de Addis Ababa</p>

As crianças participaram ativamente dos dias sem carro em Addis Ababa, conhecidos como “Menged Le Sewe” (Ruas para Pessoas) (Foto: Nafkot Gebeyehu)

Algumas áreas podem ser melhores se fechadas por completo para o tráfego de veículos. Fechar ruas temporariamente já se mostrou um método eficaz de estimular a atividade econômica e de vizinhança ao permitir que as pessoas andem mais a pé. Essa medida também pode criar novas áreas de recreação para as crianças. Seja o Raahgiri Day na Índia, a Ciclovía na América Latina ou o Menged Le Sewe na Etiópia, as crianças em geral estão entre os mais animados com os dias de “ruas abertas”.

Os dias sem carro não precisam ser minuciosamente organizados ou planejados para serem bem-sucedidos – precisam apenas focar em incentivar a atividade física e a brincadeira. O fechamento de ruas para os carros pode ser um alívio, especialmente para bairros densos e com poucas áreas verdes ou abertas. Priorizar as crianças nessas iniciativas ajudará as cidades não apenas a oferecer aos mais jovens espaços ao ar livre saudáveis e seguros, mas também a reforçar a importância de um futuro mais limpo, sustentável e equitativo.

5. Considerar o nível de visão e as habilidades cognitivas das crianças

<p>>Uma estudante em Mumbai participa de uma atividade organizada pelo WRI Índia para pensar as ruas a partir do ponto de vista das crianças</p>

Uma estudante em Mumbai participa de uma atividade organizada pelo WRI Índia para pensar as ruas a partir do ponto de vista das crianças (Foto: Rohit Tak/WRI)

Devido a suas condições de tamanho, visão e habilidades cognitivas, as crianças percebem o entorno de forma diferente dos adultos. Planejadores urbanos devem considerar o ambiente construído sob essa perspectiva, com ênfase para os espaços públicos e a mobilidade.

Em um estudo em Mumbai, o WRI Índia usou o método “fotovoz” (em inglês, photovoice) para reunir as percepções das crianças na área no entorno da escola e entender como tornar sua experiência e seus deslocamentos mais seguros.

Com base nessa análise, o WRI desenvolveu um conjunto de elementos para uma zona escolar mais segura: travessias elevadas e em cores vibrantes para controlar a velocidade dos carros e serem facilmente visíveis ao nível dos olhos das crianças; calçadas amplas, caminháveis e livres de obstáculos que se adequem ao conforto e à coordenação infantil; faixas-guias táteis para ajudar as crianças a seguir com segurança na calçada; sinalização de aviso e marcações interativas na calçada para brincar; e áreas de espera dedicadas nos portões de entrada da escola.

6. Zonas de ar limpo

<p>>Criança pedalando em Kalimantan Central, na Indonésia</p>

Criança pedalando em Kalimantan Central, na Indonésia (Foto: Aulia Erlangga/CIFOR/Flickr)

As crianças são particularmente vulneráveis à poluição do ar, que pode afetar seu desenvolvimento neurológico e causar morte prematura. Por serem mais baixas, as crianças estão expostas a 30% mais carbono negro proveniente do escapamento de veículos que os adultos. Segundo a Organização Mundial da Saúde, quase 1 em cada 10 mortes por poluição do ar é de crianças menores de cinco anos. Em países de baixa e média renda, 98% das crianças menores de cinco anos respiram níveis de PM 2,5 acima do limite seguro.

Zonas de ar limpo podem melhorar a qualidade do ar dentro e no entorno de locais estratégicos, como escolas e comunidades residenciais, ao desestimular o tráfego de veículos em marcha lenta, restringir a entrada de modelos mais poluentes e incentivar modos de transporte mais limpos e a presença de infraestrutura verde. No Reino Unido, políticas como essas inspiraram ações bem-sucedidas em cerca de 40 escolas.

Projetos de ciência cidadã para o monitoramento da qualidade do ar também podem ajudar a aumentar a conscientização e o engajamento público – sem mencionar a produção de dados locais valiosos. Em 2019, a Aliança para a Saúde e o Meio Ambiente (Health and Environment Alliance) lançou uma das maiores iniciativas de ciência cidadã já vistas até hoje para medir os poluentes atmosféricos internos e externos em 50 escolas em Berlim, Londres, Paris, Madri, Sofia e Varsóvia. Com participação ativa das escolas e dos alunos, a iniciativa descobriu que os poluentes externos das emissões originadas pelo tráfego de veículos em marcha lenta estavam influenciando a qualidade do ar dentro das escolas. Esforços como esse, que geralmente não requerem alta tecnologia, podem ser uma oportunidade para obter apoio político para a implementação de zonas de ar limpo, bem como para ensinar as crianças sobre a ciência da qualidade do ar e envolvê-las em suas comunidades.

<p>>imagem do Projeto de zona escolar segura feito pelo WRI Índia para a escola Christ Church em Mumbai (Arte: WRI Índia)</p>

Projeto de zona escolar segura feito pelo WRI Índia para a escola Christ Church em Mumbai (Arte: WRI Índia)

Não é preciso dizer que uma abordagem de planejamento amigável para as crianças não beneficia apenas as crianças. Como disse uma vez o ex-prefeito de Bogotá, Enrique Peñalosa, “as crianças são uma espécie de indicador vivo. Se pudermos construir uma cidade boa para as crianças, teremos uma cidade boa para todas as pessoas”.

À medida que os governos municipais e nacionais se recuperam do coronavírus e ponderam sobre os investimentos que devem restabelecer a vitalidade econômica e social, incorporar a perspectiva das crianças pode ajudar a criar cidades mais inclusivas, saudáveis e habitáveis. É hora de as cidades começarem a pensar de forma proativa e de longo prazo sobre a melhor maneira de atender a todos os moradores, incluindo os mais jovens.