Se ignoramos o passado das bicicletas, como poderemos inventar seu futuro? James Longhurst refez a trajetória das bikes nos Estados Unidos em Bike Battles: A History of Sharing the American Road (2015). Leitura proveitosa para quem se interessa por ciclismo e cidades, o livro mostra que a defesa das bikes como uma alternativa sustentável aos carros não é moda passageira, mas uma disputa histórica cujos resultados ainda hoje desafiam gestores e planejadores.

– Nossas decisões passadas restringem nosso espaço de decisão atual a um subconjunto do universo de todas as decisões possíveis. Cientistas políticos chamam isso de "dependência da trajetória". Historiadores chamam apenas de História – brinca o autor, pesquisador e professor da Universidade de Wisconsin.

Enveredando por esquecidas ciclovias – reais e metafóricas –, Bike Battles dá indícios de que a hora de garantir às bicicletas espaço compatível com suas virtudes é agora. No início de outubro, Longhurst apresentou sua pesquisa na sede do WRI em Washington D.C., em painel organizado pela iniciativa NUMO e WRI Ross Centro para Cidades Sustentáveis, que também teve participação do escritor e defensor de causas ambientais Peter Harnik.

Na entrevista a seguir, Longhurst fala ao WRI Brasil de suas descobertas sobre o passado e as perspectivas para o futuro.

Capa da revista nova-iorquina Sidepaths de 1900 documenta proliferação de ciclovias nos EUA da virada do século 20

Como os primeiros entusiastas imaginavam o papel das bikes no transporte?

Houve tantas visões do propósito da bicicleta quanto pessoas que o imaginaram. Gosto da ideia de que existem perspectivas culturais conflitantes, complementares ou mutáveis da bicicleta. Pode ser um marcador das elites e um marcador dos pobres; libertadora e perigosa; um veículo limpo e acessível e uma extravagância.

Quando a bicicleta se tornou uma moda nos Estados Unidos nos anos 1890, embora fosse cara – e o estilo de vida associado a ela, de clubes e roupas sofisticadas, fosse ainda mais exclusivo –, muitos de fora das elites a viam como um utilitário de transporte e libertação pessoal, em uma época anterior à popularização do carro. Mulheres passaram a ter liberdade de se locomover e se exercitar não-acompanhadas; jovens em cidades e vilarejos experimentaram as paisagens e os campos de maneiras completamente novas; e moradores da cidade, vendedores e comerciantes começaram a usar a bici como transporte diário (sobre esse assunto, recomendo os livros The Mechanical Horse, de Margaret Guroff, e Old Wheelways, de Robert McCullough). Certamente, muitos a saudavam como o futuro do deslocamento nas cidades, o “cavalo do homem pobre”: relativamente barata, não precisava ser alimentada, podia ser deixada encostada a um prédio por horas sem supervisão, pronta para ser montada dia ou noite. Ter um cavalo em uma cidade do século 19 era caro, e montá-lo para ir ao trabalho era quase impraticável. A classe trabalhadora morava perto do trabalho, ou o trabalho acontecia em casa ou a uma curta distância – mas a bike prometeu mudar tudo isso.

Quando essa visão morreu?

Embora tenha desaparecido nas primeiras décadas do século 20, não creio que tenha morrido completamente (chegou perto nos anos 1950). Comércio, correios e polícia continuaram a usar bicicletas, e os serviços de ciclistas mensageiros ressurgiram no pós-guerra. Houve um breve retorno com o "Victory Bike" da Segunda Guerra Mundial (programa do governo para promover o uso de bicicletas), e a volta do ciclismo como transporte no final da década de 1960. A bicicleta como meio de transporte nunca realmente desapareceu, mas tornou-se menos comum e sumiu da opinião pública. Então, para a maioria dos americanos, a bicicleta se tornou um "significante flutuante", ora uma prática de elite, ora um símbolo de infância e imaturidade.

A disputa por espaço em charge publicada na revista Harper's Weekly em 1896

Houve cidades ou estados à frente de seu tempo em termos de estímulo ao uso da bicicleta?

Sim, houve peculiaridades que tornaram certas cidades mais compactas, caminháveis e “pedaláveis”. Há muitas exceções ao desenvolvimento carrodependente. Minneapolis manteve remanescentes de sua rede de sidepaths (ciclovias construídas no fim do século 19 em várias cidades americanas) nos "Grand Rounds" (80km de trilhas e ciclovias que interligam parques da região), enquanto outras cidades apagaram ou esqueceram os caminhos que haviam construído. Isso deu a Minneapolis uma vantagem na tentativa de reconstruir um tipo diferente de rede de transporte após o ressurgimento do ciclismo adulto na década de 1970. O Oregon aprovou uma lei de bicicleta em 1971 que mudou a infraestrutura e o sistema de financiamento e colocou o estado em um caminho diferente do resto do país, tornando-o único de várias maneiras. Davis, na Califórnia, escolheu um modelo completamente diferente para o design de ruas na década de 1960. Mackinac Island, Michigan, é um pequeno resort estranho que proíbe veículos a motor e sempre proibiu.

Que lições esses casos nos deixam?

Estes são exemplos de escolhas e “acidentes felizes” do passado que mudaram o transporte presente. Nossas ruas e cidades são nossas para projetar: as ruas podem ser de concreto, mas não são esculpidas em pedra. O ruim de se pensar em "dependência da trajetória" é que as decisões passadas nos prendem ao nosso presente. Mas o bom é que nossas decisões no presente moldam o futuro: somos o passado do futuro.

Como os argumentos a favor e contra a bicicleta mudaram com o passar do tempo?

Novas perspectivas surgiram, mas as antigas visões permanecem, então temos vários argumentos (às vezes contraditórios) coexistindo. A bicicleta é para todos, apenas para as elites ou apenas para os pobres. É patriótica ou é anormal. É para crianças ou é a máquina limpa do futuro. É para homens e, ao mesmo tempo, é de alguma maneira não masculina. É um perigo para a vida e o corpo, mas é também o caminho para a saúde e a vitalidade. Eu acho que esses argumentos contrastantes a favor e contra a bicicleta ajudam a explicar as enormes disputas políticas por ciclovias e por políticas públicas.

O momento de retomada das bikes que vivemos revela uma mudança em como pensamos a cidade?

Vivemos uma mudança filosófica na maneira como os planejadores urbanos e de trânsito pensam o espaço. Uma nova geração Millennial, de oportunidades limitadas, mudou-se para as cidades e repensou a compra do automóvel, e há também as crescentes limitações econômicas para a construção e manutenção de estradas. E os ativistas também tiveram algum sucesso. Preocupa-me que os departamentos de transporte e as políticas de gastos sejam estanques demais para mudar. O progresso é lento: são instituições de outra era, e suas velhas suposições sobre o crescimento econômico, o custo da energia e o retorno do investimento já não fazem sentido. Talvez essas instituições tenham de levar os governos ao colapso orçamentário antes que possam ser substituídas por melhores agências. Recentemente, houve o veto governamental ao projeto California Complete Streets (Ruas Completas da California), que enfrentou o lobby do departamento de transporte. Não me parece que os departamentos de trânsito tenham demonstrado que podem promover a correção de desigualdades, injustiças e catástrofes climáticas resultantes do sistema de transporte que eles ajudaram a criar.

O historiador James Longhurst (foto: UW-L/divulgação)

Como historiador e entusiasta de bicicletas, qual sua visão sobre o que as cidades podem fazer além de construir ciclovias?

Os desafios das mudanças climáticas, de reconstruir nossas cidades como motores da justiça e de enxergar além do presente para imaginar modos de vida mais saudáveis e equitativos, são desafios tão grandes que há um infinito de oportunidades, projetos e formas de contribuir. Como minha avó dizia diante de uma plantação de tomates cheia de ervas daninhas: "Escolha uma fileira e comece a capinar". Se todo mundo parar de olhar espantado para o tamanho do trabalho a ser feito, podemos resolver isso juntos. Não são apenas ciclovias, é zoneamento; não é apenas zoneamento, é comércio local; não é apenas comércio, são escolas; não são apenas escolas, é tecnologia; não é apenas tecnologia, é empoderamento para as pessoas. Esteja você ensinando uma criança a trocar um pneu ou se engajando em movimentos nacionais, suas contribuições são necessárias. Escolha uma fileira e comece a capinar.