Depois de apresentarem seus projetos, as 11 cidades da Rede Nacional para a Mobilidade de Baixo Carbono têm agora o desafio de tirar as Ruas Completas do papel. São muitos os desafios, sejam eles econômicos, políticos, técnicos ou de governança. A realidade das contas públicas do país, não apenas na esfera dos governos locais, mas também estaduais e federal, aumenta a exigência da população para que os investimentos públicos gerem impacto na sociedade.

Durante a 72ª Reunião Geral da Frente Nacional de Prefeitos (FNP), em Recife, o WRI Brasil realizou uma mesa redonda para apontar alguns caminhos possíveis para viabilizar financeiramente os projetos de Ruas Completas, mas também outros investimentos em infraestrutura. Participaram do debate Sérgio Avelleda, secretário de Transportes de São Paulo; Martha Martorelli, diretora de Projetos do Ministério das Cidades; Leonardo Letelier, CEO da Sitawi Finanças do Bem; e Manoela Obino, sócia fundadora do Urbe.ME. 

Em setembro deste ano, a equipe do WRI Brasil já havia trabalhado com representantes da Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes e da CPTM, de São Paulo, em um modelo para financiar o projeto da Rua Joel Carlos Borges. É importante considerar que os projetos de Ruas Completas podem ser desde uma intervenção pontual, em uma rua de trânsito local, até uma avenida arterial, um eixo de comércio da cidade, já que o conceito se aplica a todas as ruas. Por isso, os modelos de financiamento também precisam ser definidos caso a caso.

Henrique Evers, coordenador de Desenvolvimento Urbano do WRI Brasil, trouxe quatro possíveis caminhos para os municípios financiarem seus projetos de Ruas Completas: analisar os investimentos já disponíveis e ver para onde estão indo, se podem ser redirecionados; buscar parcerias internamente, alinhando objetivos dentro do próprio governo; usar o financiamento estrategicamente ou construir um modelo específico para o projeto.

Um dos exemplos é de Nova York, que gasta US$ 2 bilhões em operações tapa-buracos. Qualificações das ruas poderiam ser incluídas nesse orçamento, aproveitando a intervenção no pavimento para melhorar as condições das vias. “Por vezes, são feitas grandes intervenções nas ruas, como uma obra de BRT, mas o projeto não contempla a rua como um todo, aí a qualificação das calçadas fica pendente. Ter uma visão e critérios de desenho de ruas pode gerar também uma economia para a cidade, que pode planejar as obras de maneira mais eficiente”, defendeu Henrique.

Com benefícios para diversas áreas, as Ruas Completas vão muito além do transporte. Por isso, diferentes secretarias poderiam ser envolvidas nesses projetos, como as de saúde, meio ambiente, educação, turismo, cultura e desenvolvimento urbano. Assim, o financiamento não precisaria ficar restrito à área da mobilidade, já que os resultados impactam outras áreas de interesse. Outras alternativas, como recursos das multas de trânsito, taxação de congestionamento, instrumentos de gestão e uso do solo, como captura de mais valia, foram colocadas para debate.

<p>Henrique Evers, coordenador de Desenvolvimento Urbano do WRI Brasil, apresentou possibilidades de financiamento para Ruas Completas (foto: Daniel Hunter/WRI Brasil)</p>

Henrique Evers, coordenador de Desenvolvimento Urbano do WRI Brasil, apresentou possibilidades de financiamento para Ruas Completas (foto: Daniel Hunter/WRI Brasil)

Outro exemplo vem do estado de Massachusetts, nos Estados Unidos, que criou um programa de financiamento para Ruas Completas. Para acessar a verba, as cidades precisavam ter uma política de Ruas Completas em vigor e ter participado de treinamentos e workshops sobre o programa, para só então apresentar projetos que passam por uma avaliação técnica criteriosa. Nesse modelo, como o programa trabalha com um orçamento maior por juntar diversas obras, há a possibilidade de acessar financiamento externo. Empréstimos subsidiados, de bancos de fomento, por exemplo, exigem investimentos maiores do que a intervenção em apenas uma rua.  

“Existem ainda muitas outras alternativas. Financiamento federal, contratos de impacto social, emendas parlamentares, termos de doação especializados, programas de adoção para operação e manutenção, recursos de multas, cobranças de estacionamento, royalties, contrapartidas para impacto de empreendimentos, fundos de desenvolvimento urbano, crowdfunding, entre várias outras. Cada cidade precisa pensar estrategicamente qual modelo usar de acordo com a sua realidade”, lembrou Evers.

Como colocar tudo isso em prática?

A provocação para os participantes do debate era discutir possibilidades de financiamento das Ruas Completas pelo país. Durante a conversa, o secretário de Mobilidade e Transportes de São Paulo, Sergio Avelleda, argumentou que a sociedade ainda pensa sob a lógica do automóvel e essa é a transformação necessária para as Ruas Completas se espalharem pelo país. “Ninguém discute quando investimos R$ 300 milhões para tapar buracos. Precisamos ganhar a sociedade, assim teremos o dinheiro. Janette Sadik-Khan passou sete anos negociando, convencendo, e mesmo assim sofreu resistência brutal em Nova York. Temos a batalha política de convencer a sociedade”, defendeu Avelleda, lembrando que não se deve discutir Ruas Completas como uma alternativa, como se não fosse uma obrigação do poder público projetar assim.

<p>Da esquerda para a direita: Manoela Obino, Sérgio Avelleda, Martha Martorelli e Leonardo Letelier (fotos: Daniel Hunter/WRI Brasil)</p>

Da esquerda para a direita: Manoela Obino, Sérgio Avelleda, Martha Martorelli e Leonardo Letelier (fotos: Daniel Hunter/WRI Brasil)

Representando o Ministério das Cidades, Martha Martorelli aproveitou para dar detalhes sobre o programa Avançar Cidades, lançado pelo governo federal neste ano. Atualmente, segundo ela, o orçamento do Ministério das Cidades está restrito a emendas parlamentares e ao financiamento a partir de recursos do FGTS – um recurso de gestão da Caixa, privado, mas cuja aplicação cabe ao Ministério, que decide e cria regras para o uso. “Como fazemos política pública, que é a principal função do governo federal, em um setor em que a autonomia é do município? Na hora de se disponibilizar recursos”, explica Martha.

Por isso, foram criadas regras para que os projetos selecionados tenham impacto real nos municípios. Outra novidade é a possibilidade de financiamento também para o planejamento. “Agora, poderão ser financiados projetos de infraestrutura e instrumentos de planejamento, como Planos de Mobilidade, por exemplo, para municípios acima de 100 mil habitantes. Para os menores que isso, desenvolvemos uma metodologia bem simplificada, com uma cartilha de orientação, e haverá um sistema para que os municípios façam diretamente no site do Ministério”, contou Martha. Outra novidade é que as cidades ainda sem Plano de Mobilidade deverão primeiro financiar a construção de seus planos para depois acessar recursos para financiar seus projetos.

Como é um programa contínuo, que não tem prazo para ser encerrado, o Avançar Cidades proporciona tempo para uma boa gestão municipal organizar o seu planejamento. Projetos de Ruas Completas poderiam ser incorporados a outras intervenções urbanas. “Se um município precisa de abrigos de ônibus, por exemplo, ele pode ter um projeto de abrigos e Ruas Completas para chegar no valor mínimo de R$ 5 milhões. Não precisa ser obrigatoriamente apenas de Ruas Completas para chegar ao valor mínimo”, ressaltou Martha.

Paulo Miotta, coordenador de Projetos e Articulação Institucional da FNP, ressaltou a importância da convicção nas gestões municipais, de dar maior atenção ao que impacta mais a cidade. “A coordenação de governo dos nossos municípios é muito falha. Os gabinetes são extremamente vulneráveis. Enquanto não tivermos uma organização de governo transversal, focada em resultados, não vai funcionar. Os dirigentes ficam muito presos às demandas do dia a dia, às pequenas coisas. Isso tira o foco. Os recursos mais importantes do gabinete do prefeito são o foco e o tempo”, disse.

Uma via alternativa foi apresentada por Manoela Obino, sócia fundadora do Urbe.ME, que trouxe a possibilidade de iniciativas de financiamento coletivo pagarem por intervenções urbanas. Ela contou que o projeto do Highline, em Nova York, foi feito dessa maneira, a partir do momento em que os moradores perceberam o potencial da iniciativa. Do mesmo modo aconteceu uma ponte para pedestres erguida na Holanda, na qual moradores que ajudaram a financiar podiam ter seu nome estampado em um dos tijolos. Leonardo Letelier, CEO da Sitawi Finanças do Bem, alertou sobre a existência de “investidores de impacto”, que aplicam seus recursos em projetos que comprovem trazer um benefício social ou ambiental. Com medições claras desses impactos, Leandro acredita que os chamados contratos de impacto social poderiam se aplicar a Ruas Completas.