Artigo publicado originalmente no Insights.

À medida que a situação trágica da pandemia de Covid-19 se agrava, as restrições globais para impedir a disseminação do vírus – incluindo solicitações para que as pessoas fiquem em casa, fechamento do comércio e proibições de viagens – podem contribuir para a pior crise econômica desde a Grande Depressão. O vírus já causou um impacto permanente no setor de energia: o consumo global deve cair 6% ao longo de 2020, e o setor de energia renovável não foi poupado.

Conforme estimativas da Wood Mackenzie, em todo o mundo as instalações de armazenamento de energia solar devem cair quase 20% em 2020 em relação às projeções anteriores à pandemia; as instalações de turbinas eólicas devem ter uma queda na produção de 4,9 gigawatts (GW), o equivalente a uma redução de 6%. Esse declínio, aliado à redução também de medidas de eficiência energética, já levou a uma perda de 106 mil empregos apenas em março nos Estados Unidos (nos setores de perfuração e refinaria, foram 51 mil empregos perdidos no mesmo período). A análise mostra que 15% de toda a força de trabalho¹ da energia limpa nos EUA pode ser perdida nos próximos meses – mais de meio milhão de empregos.

À medida que governos no mundo todo aumentam os pacotes de estímulo para criar empregos, duas coisas ficam claras: 1) devemos investir em setores que fortaleçam a saúde e o bem-estar das pessoas; e 2) precisamos reduzir a vulnerabilidade econômica e de infraestrutura. Sustentar indústrias antigas e poluentes não é uma solução.

A energia renovável, por outro lado, reduz a poluição do ar, o que torna as pessoas menos vulneráveis a doenças. Cerca de 4,2 milhões de mortes por ano estão relacionadas à exposição à poluição atmosférica, e uma análise recente de Harvard mostrou que os habitantes de cidades de ar mais poluído têm maior probabilidade de morrer de Covid-19. Investir em energia renovável pode ajudar a evitar emissões de gases de efeito estufa e a proteger as comunidades dos efeitos das mudanças climáticas. Também é a fonte mais barata da nova geração de energia para mais de dois terços do planeta e não possui custos com combustível. As fontes renováveis podem ainda reduzir o ônus econômico das contas de energia, eliminando as cobranças pelo combustível – especialmente quando associadas a melhorias estruturais de eficiência energética em nossas residências e empresas.

Agora, mais do que nunca, é vital que os países priorizem a energia renovável e outras tecnologias de baixo carbono, para que se recuperem melhor após a Covid-19, criando novos empregos e reiniciando suas economias.

Antes do surto de coronavírus, o mundo seguia em uma trajetória de transição, direcionando os investimentos em combustíveis fósseis poluentes para a energia renovável: a Bloomberg New Energy Finance (BNEF) estimou em 2019 que, entre agora e 2050, 77% dos investimentos em novas fontes de geração de energia serão em renováveis. É importante que governos e investidores tratem a Covid-19 não como um sinal para desacelerar, mas para acelerar essa mudança. Novas pesquisas mostram que 75% dos americanos são a favor de priorizar a energia limpa em detrimento de combustíveis fósseis nos pacotes de estímulo, enquanto 67% apoiam a prestação de assistência financeira às empresas de energia renovável para enfrentar a crise econômica.

Aqui estão três razões de por que os pacotes de estímulo precisam incluir investimentos em energia renovável:

1. A energia limpa gera um retorno econômico de 3 a 8 vezes maior que o investimento inicial

O novo relatório da Agência Internacional de Energia Renovável (IRENA, na sigla em inglês), Outlook Global Renewables 2020, avalia o impacto socioeconômico de vários cenários. O “Cenário de Transformação da Energia” – uma transformação ambiciosa, mas realista, que limitaria o aumento da temperatura global a bem abaixo de 2°C – custaria US$ 19 trilhões a mais do que uma abordagem comercial, mas traria benefícios entre US$ 50 trilhões e US$ 142 trilhões até 2050, aumentando o PIB mundial em 2,4%. Para dar um passo adiante, a “Perspectiva de Descarbonização Profunda” da IRENA – que descreve um mundo com emissões líquidas zero entre 2050 e 2060 – custaria entre US$ 35 trilhões e US$ 45 trilhões, mas renderia entre US$ 62 trilhões e US$ 169 trilhões em economias acumuladas, se considerados os custos sociais e de saúde evitados ao considerar saúde e saúde evitados com a redução da poluição do ar.

Gráfico mostra custos e benefícios da energia limpa

Não se trata apenas de investimento em energia renovável; é também um investimento que mitiga os riscos financeiros das mudanças climáticas (entre outros). Por exemplo: de acordo com dados do Aqueduct, plataforma desenvolvida pelo WRI, até 2030 pelo menos 2,5 milhões de pessoas e US$ 42 bilhões em propriedades urbanas serão impactados anualmente por inundações costeiras causadas pelas mudanças no clima. Considerando as inundações ribeirinhas, serão afetados 30 milhões de pessoas e US$ 79 bilhões em propriedades urbanas.

2. A instabilidade do preço dos combustíveis fósseis é uma oportunidade global para acelerar a transição para a energia limpa

A indústria de combustíveis fósseis está entre as mais atingidas pela crise do coronavírus, com as principais empresas de petróleo, gás e petroquímica perdendo em média 45% do seu valor de mercado. Desde o começo do ano, observamos a queda mais acentuada da demanda de petróleo em 25 anos. O preço do petróleo nos Estados Unidos ficou negativo pela primeira vez na história.

Embora os decretos de lockdown tenham reforçado os desafios da indústria de combustíveis fósseis, esse colapso estrutural já era previsto há bastante tempo. Na última década, a indústria gastou mais em recompras e dividendos de ações do que gerou em receita, tornando a energia o setor com o pior desempenho desde 2009 entre os 11 setores avaliados pelo S&P500. Além disso, algumas das maiores instituições financeiras do mundo continuam a se desfazer dos combustíveis fósseis, reconhecendo os crescentes riscos de investimentos intensivos em carbono. De acordo com o Center for International Environmental Law, isso significa que “a médio prazo, a perspectiva de uma recuperação completa para muitos desses fluxos de receita é, na melhor das hipóteses, incerta e, em muitos casos, improvável”.

Gráfico mostra preços do setor de petróleo e gás

Pesquisas mostram que o mundo precisa reduzir pela metade as emissões de dióxido de carbono relacionadas à energia até 2030, reduzi-las pela metade novamente até 2040 e, em seguida, buscar zerar as emissões líquidas até 2050 – seguindo com reduções substanciais depois disso –, a fim de evitar os piores efeitos das mudanças climáticas. Para que as economias se recuperem melhor e de maneira mais sustentável, precisamos começar acabando com nossa dependência dos combustíveis fósseis.

Isso exigirá o corte de mais de US$ 5,2 trilhões anuais em subsídios, incentivos fiscais e externalidades não cobradas (como a poluição do ar e piora das condições do clima) da produção e uso de combustíveis fósseis. Também implica mudanças nos setores industrial e de transportes – dois dos mais poluentes atualmente, responsáveis por mais da metade das emissões globais de gases de efeito estufa.

Para descarbonizar a indústria, é preciso diversificar as fontes de energia a partir de tecnologias de baixo carbono, como o uso de energia solar térmica concentrada para água quente, hidrogênio ou amônia. No setor de transportes, a transição requer ainda mais esforços para a eletrificação das frotas de ônibus e veículos e a possibilidade de carregá-los também com energia gerada 100% a partir de fontes renováveis, além do suporte a novas formas de mobilidade urbana e sistemas de trânsito. Depois da Covid-19, espera-se que as vendas de veículos elétricos no mundo caiam mais de 40% em 2020. Para reverter o cenário e colocar as metas de eletrificação de volta nos trilhos, serão necessários incentivos para veículos e ônibus elétricos, bem como para a infraestrutura da rede e de carregamento.

3. Investimentos ambiciosos em eficiência energética e fontes renováveis podem gerar 63 milhões de novos empregos até 2050

Hoje, mais de 11 milhões de pessoas trabalham no setor de energia renovável em todo o mundo. Na Europa e nos Estados Unidos, são 3,3 milhões trabalhando no setor de eficiência energética. Segundo informações da Agência Internacional de Energia, a maioria dos empregos na área de eficiência energética cria, ainda, outras oportunidades locais de trabalho em pequenas e médias empresas.

No “Cenário de Transformação da Energia” do relatório da IRENA, o número de empregos no setor de energia renovável em todo o mundo pode mais que triplicar, chegando a 42 milhões novas oportunidades de trabalho em 2050. Os empregos em eficiência energética, por sua vez, podem crescer até seis vezes, empregando mais de 21 milhões de pessoas nos próximos 30 anos. O total de empregos sobe para 100 milhões se considerarmos o impacto no setor de energia como um todo, incluindo os trabalhos relacionados à transição energética, como infraestrutura e flexibilidade da rede, ou a tecnologias convencionais, como combustíveis fósseis e energia nuclear. Por outro lado, espera-se que a indústria de combustíveis fósseis perca mais de 6 milhões de empregos no mesmo período, em comparação com os níveis de hoje.

Mapa mostra impacto da energia limpa na criação de empregos

No entanto, apenas investir em energia renovável não é o bastante. Embora milhões de oportunidades de trabalho sejam criadas à medida que fizermos a transição para formas mais limpas de energia, a segurança dos empregos nas indústrias de combustíveis fósseis será simultaneamente posta em risco. A partir de agora, os governos devem planejar de maneira proativa estratégias justas de transição para os trabalhadores afetados e diversificar as atividades econômicas nas comunidades impactadas. É essencial garantir aos trabalhadores do setor de combustíveis fósseis a oportunidade de continuar trabalhando. Isso pode ser feito a partir da implementação de programas de treinamento e educação, inclusive para novos empregos nas áreas de energia renovável e eficiência energética. Algumas das habilidades de trabalho necessárias para esses setores já se sobrepõem. Os trabalhadores da indústria de petróleo e gás, por exemplo, estão particularmente bem posicionados para fazer a transição para a indústria eólica offshore, uma vez que ambos os setores compartilham tecnologias e elementos da cadeia de abastecimento.

Um mundo de baixo carbono depois da Covid-19

As decisões tomadas hoje pelas lideranças mundiais afetarão o mundo muito tempo depois da crise do coronavírus. Os líderes têm uma escolha: reabrir as economias movidas pelas mesmas fontes que falharam no passado ou começar a caminhada rumo a um futuro limpo, seguro e próspero. Os governos que adotarem a energia renovável e medidas de eficiência energética não apenas injetarão dinheiro em suas economias; protegerão a saúde e o bem-estar de seus cidadãos em um mundo estável, sustentável e resiliente.


¹A análise categoriza a energia limpa em cinco setores: geração de energia elétrica a partir de fontes renováveis; combustíveis limpos; transmissão, distribuição e armazenamento limpos; eficiência energética; e transporte alternativo.