Céus mais limpos e vistas mais amplas e claras têm sido um dos poucos pontos positivos na atual crise da Covid-19. Os moradores de Délhi conseguiram enxergar novamente o Himalaia nos meses de abril e maio, quando os níveis de partículas no norte da Índia atingiram o nível mais baixo em 20 anos. Evidências de satélites e monitores locais mostram quedas generalizadas de dióxido de nitrogênio, composto danoso aos pulmões: entre 20% e 40% em cidades da China, Europa e Estados Unidos. Durante os períodos de lockdown, também foram registradas quedas na concentração de material particulado.

Para ser claro: os bloqueios por conta da Covid-19 não “resolveram” o problema da qualidade do ar. Quedas acentuadas na movimentação de pessoas, fabricação de produtos e (em alguns lugares) na demanda de eletricidade contribuíram visivelmente para tornar o ar mais limpo, mas nem a poluição foi removida nem essa mudança aconteceu a um custo razoável. Nos EUA, a concentração de ozônio no nível do solo, por exemplo, permaneceu alta durante o lockdown, em parte devido à química de como é formado, mas também porque caminhões, usinas de energia, refinarias e outros grandes contribuintes ainda estavam em funcionamento. Em paralelo, alguns dos fatores estruturais subjacentes à poluição do ar – acesso precário à energia, redução no controle de emissões e regulamentações e fiscalizações fracas – parecem piorar à medida que as economias reabrem. O presidente dos Estados Unidos emitiu nas últimas semanas duas ordens executivas que limitam os requisitos ambientais e o controle da poluição para obras de infraestrutura, citando a necessidade de evitar o impedimento da recuperação econômica. A Índia, por outro lado, manteve o compromisso previsto em seu Orçamento 2020-2021 de aumentar substancialmente o investimento na limpeza do ar urbano, mesmo com as dificuldades econômicas geradas pelo lockdown, que também deve ter contribuído para o aumento da exposição à poluição do ar em ambientes fechados.

A crise do coronavírus, no entanto, trouxe algum alívio às apostas nos benefícios do ar limpo. A desaceleração ofereceu um rápido vislumbre de como seria um futuro de ar mais limpo – com menos casos de asma; ciclos de vida mais longos; culturas, florestas e ecossistemas mais saudáveis; menos aquecimento; e chuvas mais previsíveis. Também destacou as implicações para a saúde de se viver respirando ar poluído. Não apenas a poluição aumenta a vulnerabilidade a doenças infecciosas – os efeitos da Covid-19 nos pulmões quase certamente também aumentam a vulnerabilidade aos efeitos da poluição em pacientes com asma e outras complicações respiratórias.

<p>imagem listando malefícios da poluição do ar</p>

Precisamos agir agora para construirmos um futuro com ar mais limpo. A poluição atmosférica é não apenas um dos principais riscos ambientais para mortes prematuras, mas uma ameaça maior do que imaginamos ao desenvolvimento sustentável.

As evidências científicas sobre as fontes de poluição e a política econômica ligada à qualidade do ar apontam para etapas que podem ajudar a tornar realidade um futuro com ar limpo.

1. Combater as fontes reais da poluição

Uma lição da desaceleração econômica decorrente da Covid-19 é que o corte da combustão de combustíveis fósseis deixa o ar mais limpo; outra é que ainda sobra muita poluição depois disso. As fontes variam de acordo com o local e o horário, mas, de modo geral, nós precisamos reduzir o uso de combustíveis fósseis, parar de queimar coisas – especialmente resíduos sólidos – e acelerar mudanças já em andamento nos sistemas alimentares, desde práticas agrícolas até a gestão dos resíduos da alimentação. Muitas dessas mudanças também trariam reduções substanciais de emissões, além de outros benefícios ambientais e novas oportunidades de emprego.

As emissões de combustíveis fósseis representam quase 60% das mortes prematuras associadas ao material particulado e à concentração de ozônio no nível do solo, dois dos principais poluentes do ponto de vista da saúde e do rendimento das culturas. E essas emissões continuam a crescer: em 2018, pelo segundo ano consecutivo, os combustíveis fósseis alimentaram quase 70% do aumento da demanda total de energia. O uso de gás natural subiu mais rápido que o carvão – uma boa notícia no que diz respeito a emissões de material particulado e dióxido de carbono, mas irrelevante para o clima e outras formas de poluição do ar. A produção de gás contribui significativamente para as emissões de metano, um poderoso gás de aquecimento e precursor da concentração de ozônio no nível do solo.

Em diversas partes do mundo, usamos combustíveis fósseis para produzir eletricidade em usinas que emitem diversos poluentes nocivos, incluindo material particulado aliado a metais e outras substâncias tóxicas, dióxido de enxofre, óxido de nitrogênio e componentes orgânicos voláteis. Também usamos esses combustíveis nos motores a combustão de carros, caminhões e navios, que são fonte primária da poluição do ar em cidades, responsáveis por um quarto das emissões globais de dióxido de carbono. Nós os usamos, ainda, para preparar alimentos e aquecer edifícios, queimando-os em caldeiras que criam pontos de emissões em bairros e áreas do entorno.

Parte da solução é mudar para alternativas mais limpas (como energia solar, eólica, geotérmica e hidrelétrica), usar portadores de energia mais eficientes (eletrificar mais, em outras palavras) e controlar as emissões restantes. Isso requer um mergulho mais profundo no sistema energético, a fim de deixar o ar mais limpo ao custo mais baixo possível. Os países mais ricos historicamente melhoraram a qualidade do ar reforçando o controle das emissões na extremidade final desse fluxo. Hoje, porém, existem alternativas mais baratas para evitar emissões antes mesmo de elas começarem a ser geradas. Para isso, são necessárias algumas atualizações no escopo do que consideramos “gestão da qualidade do ar”, a fim de incluir opções de alto nível de investimentos em infraestrutura, além de outros mecanismos direcionados ao controle das emissões. Há, contudo, um precedente crescente para a integração da qualidade do ar a outros objetivos ambientais nas principais estratégias de desenvolvimento.

Usinas de carvão por capacidade (MW)
Capacidade (1MW-740MW)


Precisamos parar de queimar coisas. Os sensores de satélite da NASA rastreiam inúmeros pequenos e grandes focos de incêndio, tanto artificiais quanto naturais. Algumas estimativas indicam que as queimadas a céu aberto e outras atividades agrícolas representam mais de um terço de todo o carbono negro (em essência, material particulado mais escuro) emitido globalmente. No sudeste da Ásia, uma grande concentração de incêndios foi visível do espaço no início de março, quando agricultores limparam a vegetação para a próxima estação de cultivo. Essa prática também é vista na África Subsaariana e no sul da Ásia, bem como em algumas partes da América Latina.

Grandes incêndios na semana de 09/03/2020 a 15/03/2020


Outros incêndios não são tão visíveis do céu, mas têm consequências significativas no solo. A queima doméstica de carvão vegetal e turfa para cozinhar e aquecer os ambientes pode influenciar de forma significativa a qualidade do ar interno e também em escala regional. Em alguns casos, as queimas domésticas se devem à falta de energia; 3 bilhões de pessoas no mundo ainda dependem de combustível sólido e de fogões tradicionais e ineficientes para cozinhar e aquecer suas casas. Outra fonte de poluição vem dos fornos de pizza, lareiras e caldeiras de biomassa. A queima de resíduos também contribui para emissão de material particulado, tóxicos atmosféricos e outros malefícios. As emissões provenientes da incineração em usinas de resíduos e energia podem ser controladas, mas a tecnologia nem sempre é aplicada. E as queimadas do solo ou de lixões abertos – feitas em aterros de países tanto de alta quanto de baixa renda – sequer contam com essa opção. O Banco Mundial estima que 93% dos resíduos em países de baixa renda e mais da metade dos resíduos no sul da Ásia, no Oriente Médio, no norte da África e na África Subsaariana acabam em lixões abertos propensos a incêndios e emissões de gases.

Emissões estimadas de carbono negro (Tg/ano) no setor residencial em 2018


E nós precisamos, também, mudar nosso sistema alimentar. Alimentos desperdiçados (cerca de 30% de toda a comida produzida) liberam metano à medida que apodrecem. A produção agrícola contribui para a poluição do ar. Emissões de gases da agricultura – de metano e óxido de nitrogênio no cultivo de arroz, amônia proveniente do confinamento de animais e do uso de fertilizantes – contribuem para a concentração de ozônio ao nível do solo e para a formação de material particulado. Um estudo de 2016 descobriu que as emissões de amônia nas fazendas – que interagem com outras fontes de emissões, como a combustão, para criar material particulado – superam outras fontes humanas de poluição atmosférica particulada fina em grande parte dos Estados Unidos, Europa, Rússia e China. Os fertilizantes ainda são necessários para garantir a segurança alimentar, mas devem ser usados com cuidado e aliados a outras medidas para reduzir o impacto das emissões do setor agrícola na poluição do ar. O mesmo estudo constatou que a redução das emissões da queima de combustíveis fósseis e das queimadas do solo a céu aberto pode limitar a conversão de amônia em material particulado o suficiente para permitir mais produção de alimentos com menos poluição.

Isso significa que uma abordagem ampla e integrada é o caminho para tornar o ar mais limpo e mantê-lo assim. É preciso identificar as principais fontes de emissões, reconhecer as interações na atmosfera que convertem emissões em poluição ambiental e fazer a gestão da qualidade do ar por meio de ações abrangendo diferentes setores e regiões geográficas.

As escolhas que fizermos nos próximos meses podem ter um efeito positivo em quase todos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

2. Reduzir a poluição “incorporada”

Enfrentar toda a gama de fatores que contribuem para a poluição é uma etapa da avaliação do cenário; reconhecer o papel do consumo global é outra. A poluição do ar aparece frequentemente associada a lugares específicos: cidades, países, regiões. Suas raízes, porém, são muito mais profundas. As emissões provenientes das cadeias de produção e fornecimento – aquelas ligadas à produção e entrega de mercadorias aos consumidores – são significativas e distribuídas de forma desigual pelo mapa.

Na China, por exemplo, grande parte da poluição está associada à fabricação de bens consumidos em outros lugares. Um grupo de pesquisadores estimou que entre 50% e 60% da poluição da China está associada ao consumo em províncias e países diferentes de onde essa poluição foi gerada. Outro estudo constatou que as emissões da produção de bens para exportação continuaram a aumentar de 1997 a 2010, mesmo com políticas públicas nacionais que fecharem fábricas ineficientes e ajudaram as famílias a usar energia de fontes mais limpas. Sessenta por cento das emissões primárias de material particulado pequeno (MP2.5) estavam ligadas às exportações para os países da OCDE.

O mesmo problema – poluição a que são expostas pessoas (geralmente menos abastadas) em áreas de produção de bens usufruídos por outras pessoas (geralmente com renda mais alta) em outros lugares – acontece nos Estados Unidos. Um estudo comparou a quantidade de poluição do ar que diferentes grupos demográficos experimentaram em seu dia a dia em relação à quantidade de poluição gerada para produzir os bens que consumiram. As populações brancas não-hispânicas foram expostas a 17% menos poluição do que a causada pela produção dos bens e serviços que consumiram. Minorias negras e hispânicas foram expostas, respectivamente, a 56% e 63% mais poluição do que a associada ao seu consumo. Essas e outras descobertas da literatura crescente sobre o tema sugerem que a poluição “incorporada” nas cadeias de produção e fornecimento é significativa e seus impactos são quase sempre regressivos. É importante manter essa lacuna em mente à medida que os países aumentam a produção – e relaxam as normas – na recuperação pós-pandemia. A demanda humana gera esses impactos.

A poluição relacionada ao frete de mercadorias também é relevante. Nos Estados Unidos, os caminhões pesados são os que mais contribuem para a poluição no setor de transportes, que, por sua vez, é responsável por mais de 20% das emissões de material particulado, 30% das emissões de COVs (composto orgânico volátil) e mais da metade das emissões de óxido de nitrogênio. A poluição no entorno de portos, depósitos de transbordo e rotas de navegação é facilmente visível do espaço.

Média dos últimos 30 dias de dióxido de nitrogênio troposférico (NO2) (mol/m², milionésimos)


Estima-se que as pegadas nacionais de poluição atmosférica – a área do território afetada pela poluição relacionada aos bens consumidos naquele país – cresçam mais rápido do que as pegadas de carbono. Os países mais ricos tendem a ver mais desse crescimento no exterior, enquanto os países de baixa renda experimentam o crescimento internamente.

Os rápidos avanços no monitoramento das fontes de poluição do ar estão pressionando as empresas a reduzir a poluição associada às suas cadeias de produção e fornecimento. Sensores remotos, monitores de baixo custo e a digitalização de registros sobre relações comerciais e movimentação de mercadorias facilitam a responsabilização de empresas específicas por pontos críticos de poluição. Esse rastreamento tem se tornado uma medida positiva, passando do nível nacional para o subnacional até chegar ao nível das instalações das empresas propriamente ditas. Como resultado, CEOs estão descobrindo que a redução da poluição, antes oculta, é necessária para manter a continuidade dos negócios, reduzir riscos regulatórios e operacionais e manter uma reputação positiva. Investidores e consumidores, por sua vez, estão aprendendo que podem contribuir para a redução da poluição apoiando empresas que agem para esse fim e evitando aquelas que continuam poluindo.

3. Unir ações locais para a mudança global

A reivindicação pela qualidade do ar em geral começa de cima para baixo, com listas de prioridades baseadas na análise global de fontes de poluição. Mas essas listas são válidas apenas aproximadamente, para qualquer lugar em particular. As raízes da poluição do ar variam de acordo com o local e a época do ano. Tornar o ar limpo de forma econômica e apoiar planos mais ambiciosos requer orientações mais específicas.

Uma campanha global pela qualidade do ar exige duas mudanças estratégicas. A primeira: organizações globais de pesquisa precisam apoiar os movimentos locais em prol da qualidade do ar com dados, análises e plataformas disponibilizando informações específicas e customizadas sobre as fontes de poluição e maneiras de combatê-las. A segunda: os movimentos locais precisam de apoio para catalisar mudanças regionais e nacionais. Boa parte da energia necessária para a mudança vem de iniciativas locais. Atores globais que buscam reduzir a poluição do ar precisam apoiar esses movimentos e reduzir os atritos que limitam o alcance das ações.

O processo de ligar a poluição a suas fontes envolve três componentes: informações espacialmente referenciadas sobre as emissões; modelos que rastreiem os movimentos e interações das emissões; e monitoramento de para onde se desloca a poluição resultante. Para agir com base nessas informações, é preciso coordenar estratégias de controle de emissões entre setores e entre fronteiras administrativas ou mesmo nacionais. A colaboração científica transfronteiriça tem crescido e pode criar uma base para outros tipos de colaboração, como a coordenação de investimentos verdes entre vizinhos.

Cada um dos componentes científicos reforça os outros: bons dados sobre emissões e poluição ajudam a melhorar os modelos que mostram o movimento e a química da poluição. Modelos robustos e dados precisos tornam possível identificar lacunas no monitoramento. E monitoramento e modelos eficientes ajudam a rastrear emissões não relatadas. Há inovações substanciais em andamento – e espaço para muito mais – em cada um desses componentes. O aprimoramento constante dos dados de satélite ajudará a preencher lacunas no monitoramento e inventários de emissões. Combinar essas informações com dados de referenciamento no solo melhora a precisão das inferências que podem ser feitas para áreas sem monitores. A economia cada vez mais digital e experimentos científicos de larga escala conduzidos pelos próprios cidadãos geram dados adicionais que ajudam a aprimorar ainda mais o cenário.

Iniciativas internacionais podem reunir esses desenvolvimentos científicos para verificação e aprimoramento rápidos e, com isso, estimular o aprendizado em regiões com condições iniciais, disponibilidade de informações e composição química do ar distintas. Dois exemplos são o Sistema Global de Informação e Previsão da Qualidade do Ar da Organização Meteorológica Mundial e a Iniciativa Global de Gases de Efeito Estufa Integrados. Da mesma forma, o Projeto Internacional de Química Atmosférica Global é uma rede científica que apoia o desenvolvimento da inteligência de que precisamos para fazer uma gestão mais eficiente da atmosfera.

Plataformas científicas como essas são essenciais para traduzir técnicas de detecção, atribuição e previsão da qualidade do ar (tanto as já existentes quanto as emergentes) em ferramentas para lideranças e comunidades locais. Mesmo quando existe embasamento científico, é difícil construir a ampla coalizão necessária para a mudança se as pessoas não entenderem como as conclusões científicas foram alcançadas. Reduzir as emissões impõe custos, e os poluidores em geral são os primeiros a contestar os fatos e apontar o dedo para outras fontes. Confiar na ciência também é importante para detectar e recompensar os progressos obtidos na qualidade do ar, que nem sempre são visíveis.

<p>gráfico mostrando formas de acelerar limpeza do ar</p>

A crise da Covid-19 apresenta uma oportunidade para construirmos um mundo mais limpo, saudável e sustentável. Impulsionadas pela demanda local por ar limpo, alianças globais podem tornar realidade esse objetivo comum. Esse esforço, contudo, exigirá uma rede ativa de cidades e comunidades, todas usando sua voz para reivindicar as mudanças necessárias em áreas como energia, agricultura, resíduos, políticas urbanas e sua representação em arenas internacionais. Redes de cidades como ICLEI e C40 e programas conjuntos, como o projeto CityAQ, da parceria entre WRI e NASA, o TheCityFix Labs, do WRI, e o Programa de Impacto de Cidades Sustentáveis, financiado pelo GEF, são um ponto de partida.

A pandemia do coronavírus permitiu um vislumbre de como seria o futuro com um ar mais limpo, mas a um custo físico e econômico trágico para milhões de pessoas. A esperança é que um futuro assim seja alcançado sem esse custo doloroso. As soluções existem. Agora é hora de começarmos a trabalhar juntos para alcançá-las.