A pandemia da Covid-19 trouxe uma onda de iniciativas públicas e privadas para ajudar as sociedades a se adaptarem e a se recuperarem, que vão de novas medidas de segurança e retomada econômica a novos modelos de negócios e mudanças de consumo. Muitas dessas iniciativas não são verdes, apesar do fato de que a sociedade precisa de mudanças substanciais para evitar os efeitos mais perigosos das mudanças climáticas e para assegurar saúde e equidade para todos.

O transporte é um setor-chave que necessita de grandes mudanças, já que responde por 14% das emissões globais de gases do efeito estufa e por 24% das emissões de carbono. Em paralelo, mais de um milhão de mortes no trânsito acontecem todos os anos, milhões de pessoas são expostas à poluição do ar e a maioria dos moradores em muitas cidades – em geral os mais pobres – não conseguem chegar ao trabalho em menos de uma hora de deslocamento.

Em um novo estudo feito em parceria com a Transport Decarbonisation Alliance, o WRI avaliou as ações de países, cidades e empresas que impactaram o setor de transportes durante a pandemia. Descobrimos que, dos US$ 298 bilhões em fundos globais de recuperação catalogados pelo Energy Policy Tracker (em português, “Rastreador de Políticas de Energia”) para o setor entre março de 2020 e fevereiro de 2021, apenas 44% afetaram o clima e a sustentabilidade de forma positiva.

Enquanto isso, algumas das ações mais encorajadoras são de âmbito local. Centenas de cidades – entre elas Lima, Paris e Addis Abeba – estão construindo novas infraestruturas para caminhada e uso da bicicleta como medidas de segurança na pandemia. Desde março de 2020, mais de 200 cidades lançaram mais de 400 intervenções para pedestres e ciclistas.

As empresas reforçaram compromissos também. Alianças corporativas, como a Corporate Electric Vehicle Alliance, viram grandes empresas internacionais de varejo, comércio eletrônico, logística e transporte de passageiros publicarem planos de descarbonização de suas frotas. Grandes fabricantes de automóveis também se comprometeram a eliminar, de forma gradativa, a produção de veículos com motor de combustão interna. Entre outubro de 2020 e fevereiro de 2021, os membros empresariais da iniciativa EV100 lançaram 89% mais veículos elétricos de passageiros e 23% mais veículos elétricos comerciais em relação ao ano anterior, além da instalação de 79% mais estações de carregamento.

No entanto, à medida que países, cidades e empresas continuam mudando suas estratégias – de estabilização imediata para uma recuperação de longo prazo –, há muito trabalho a ser feito para colocar o mundo na direção de um futuro resiliente e de emissões líquidas zero. Identificamos cinco oportunidades substanciais de investimentos para o setor de transportes que podem não apenas combater as mudanças climáticas, mas gerar empregos, promover o desenvolvimento econômico, melhorar a saúde e garantir acesso igualitário a oportunidades.

1. Estabilizar e reimaginar o transporte público

O uso e o faturamento do transporte público caíram em todo o mundo durante a pandemia, obrigando muitas agências a cortar serviços e aumentar as tarifas. Portanto, pacotes de estímulo verdes sem apoio ao transporte coletivo não são possíveis.

A cada dólar investido, o transporte público cria mais de três vezes mais empregos do que a construção de novas rodovias. Investir em transporte coletivo melhora o acesso igualitário a oportunidades de trabalho e serviços, a segurança viária, o crescimento urbano inteligente e limita as emissões de carbono. Fundos para estabilização são o primeiro passo, uma vez que vão ajudar o setor a continuar rodando e empregando pessoas. Trinta por cento dos fundos de recuperação foram destinados a isso, incluindo mais de US$ 20 bilhões nos Estados Unidos. A Nigéria também se comprometeu com mais de US$ 200 milhões para compensar os operadores de micro-ônibus pela perda de receita.

O próximo passo é colocar o transporte público no caminho certo não apenas para reviver, mas para prosperar.

Muitos lugares têm uma enorme necessidade de reimaginar o transporte coletivo como a espinha dorsal da mobilidade urbana, com base em financiamento confiável, uma melhor governança e foco no acesso a empregos, educação e serviços. Em vez de construir novas rodovias urbanas, as cidades podem aumentar o financiamento nacional e local para linhas de transporte rápido e custos operacionais do transporte público. As cidades também podem instituir políticas de mobilidade mais amplas que controlem a demanda, como a taxação de congestionamento em Londres, que gerou quase US$ 303 milhões em faturamento bruto no ano passado. Essas medidas não apenas aumentam o faturamento do setor, como colocam um preço no tráfego de veículos particulares.

Os responsáveis por planejar também têm um papel a cumprir. Eles podem realocar espaço urbano para infraestrutura prioritária para ônibus, como faixas dedicadas pintadas de vermelho, imitando um tapete vermelho, e tornar os sistemas mais amigáveis aos usuários por meio da digitalização. Déli introduziu opções de pagamento digital em 650 ônibus e emitiu mais de 200 mil bilhetes em questão de três meses da fase piloto inicial no ano passado.

2. Apostar no transporte ativo

Ciclovias e calçadas têm sido uma tábua de salvação durante os bloqueios da pandemia, oferecendo ar fresco e rotas para serviços e trabalhos essenciais. Essas infraestruturas também criam empregos, estimulam o comércio local e promovem um transporte mais saudável, seguro e livre de emissões.

As cidades que ampliaram calçadas e ciclovias de forma temporária durante a pandemia devem torná-las permanentes. Bogotá, na Colômbia, que criou 84 quilômetros de ciclovias emergenciais, anunciou um plano para adicionar 280 quilômetros à rede já existente de 550 quilômetros em quatro anos. A prefeita, ela mesma uma ávida ciclista, quer metade de todos os deslocamentos na cidade feitos de bicicleta.

E mais pode ser feito também em âmbito nacional. Apenas 4% dos gastos em recuperação econômica levantados pelo Energy Policy Tracker foram direcionados à mobilidade ativa. Esse financiamento está concentrado em poucos países, como Holanda, França e Reino Unido. O financiamento nacional para mobilidade ativa também é baixo, especialmente em países de baixa e média renda. Os programas de recuperação verde devem girar em torno do aumento dos compromissos nacionais referentes a pedestres, ciclistas e segurança viária.

3. Eletrificar os veículos

Os veículos elétricos (VEs) são cruciais para a descarbonização do transporte. As recessões provocadas pela Covid-19 reduziram as vendas desses veículos em 18% em 2020. Embora as vendas possam se recuperar, o processo de eletrificação deve acontecer muito mais rápido para atingir o zero líquido nas emissões veiculares até 2050.

Incentivos governamentais para VEs e decretos para veículos de zero emissão podem acelerar a eletrificação. O Conselho Internacional de Transporte Limpo (International Council on Clean Transportation) descobriu que governos que instituíram os incentivos fiscais mais altos imediatamente após a Grande Recessão de 2008 – incluindo os governos da Noruega, do estado da Califórnia e da Holanda – obtiveram os maiores aumentos na participação do mercado de VEs nos anos seguintes, embora alguns programas tenham fechado os olhos para consumidores de média e baixa renda. A China alcançou quase metade do mercado de VEs do mundo tornando obrigatória a fabricação de veículos de zero emissão e oferecendo subsídios à compra de VEs.

As empresas também têm um papel essencial para que se crie uma continuidade entre os decretos e a ação por parte do setor privado. Muitas anunciaram datas de saída do mercado dos veículos com motores de combustão interna.

Esse “renascimento elétrico” também exigirá muito mais estações públicas de carregamento. O layout da infraestrutura será um grande empreendimento de obras públicas, cujas estimativas pela Agência Internacional de Energia indicam a criação de 12 empregos para cada US$ 1 milhão investido. Para colocar esse número em perspectiva: apenas nos Estados Unidos serão necessários US$ 4,7 bilhões em investimentos em infraestrutura de carregamento para atender à demanda nos próximos cinco anos, resultando em mais de 56 mil empregos.

Os veículos particulares de passageiros não devem ser o único foco. Os ônibus elétricos podem melhorar o acesso equitativo a oportunidades para mais pessoas e reduzir as despesas operacionais a longo prazo. Santiago, no Chile, possui a maior frota de ônibus elétricos fora da China. A cidade conta com quase 800 ônibus elétricos, incluindo 150 encomendados este ano. Uma empresa de ônibus local descobriu que os custos operacionais e de manutenção eram, respectivamente, 70% e 37% mais baratos do que com os antigos ônibus a diesel.

4. Levar as pessoas e mercadorias para o transporte ferroviário

Em muitos aspectos, o investimento em transporte ferroviário é o elefante na sala. Durante a Grande Recessão de 2008, 26% dos fundos globais de estímulo verde foram para o setor ferroviário, que se tornou a maior categoria a receber investimentos de estímulo verde entre todos os setores. Até o momento, não foi diferente com os gastos em estímulos após a Covid-19: o Energy Policy Tracker identificou quase US$ 30 bilhões direcionados à expansão ferroviária.

Seja por parte do setor público ou privado, os investimentos no transporte ferroviário durante a recuperação devem ser verdes, visando à eficiência e à mudança na escolha do modo de transporte. Juntos, os países contrataram ou planejaram mais de 32 mil quilômetros de trilhos de alta velocidade e dentro do perímetro do urbano, incluindo as primeiras conexões ferroviárias de alta velocidade em países como a Índia. Trens de alta velocidade são 12 vezes mais eficientes em termos de energia por passageiro-quilômetro do que aviões e carros. A empresa ferroviária alemã Deutsh-Bahn anunciou planos para testar trens movidos a hidrogênio com emissão zero até 2024.

Em paralelo, cidades na China e na Índia estão transferindo o transporte de mercadorias da caçamba dos caminhões para os vagões de trens de carga, economizando emissões e melhorando a qualidade do ar local. Os investimentos também devem evitar o desenvolvimento de atividades que podem ser intensivas em carbono, como transporte de carvão, como foi o caso na China após a Grande Recessão de 2008.

5. P&D em tecnologias limpas para os setores mais difíceis de abater

Os pacotes de estímulo à recuperação econômica podem ajudar a mitigar as emissões nos setores classificados como “mais difíceis de abater”, que exigem combustíveis e tecnologias inovadores e de emissão zero. Pesquisa e desenvolvimento (P&D) em tecnologias limpas pode acelerar a disponibilidade do mercado a receber combustíveis de emissão zero e reduzir futuras barreiras de preços. Centenas de altos funcionários de bancos, economistas e ministros da fazenda votaram em P&D em tecnologias limpas como um item prioritário entre outros investimentos devido ao maior impacto climático de longo prazo.

O setor de aviação, por exemplo, viu as viagens diminuírem 60% desde março. Um retorno rápido ao modelo anterior poderia fazer o setor consumir até 27% do orçamento global de carbono disponível no cenário de 1,5°C até 2050. No mesmo período, a conversão do combustível de aviação convencional em combustível biorrenovável poderia reduzir as emissões de voos internacionais em 63%. Em paralelo, combustíveis emergentes como o hidrogênio poderiam eliminar completamente as emissões do setor. Para impulsionar a transição, a França investiu € 1,5 bilhão em apoio a P&D para lançar um avião com combustível limpo até 2035.

Tornando a mobilidade sustentável parte do “novo normal”

O mundo passou por enormes mudanças no último ano e meio e continua enfrentando uma realidade sem precedentes. A transição para um “novo normal” deixa em aberto questões sobre como alcançar um melhor equilíbrio para o meio ambiente e as pessoas. Neste momento em que os países preparam planos para aumentar sua ambição em relação ao clima antes da COP26, as escolhas sobre como gastar trilhões em recursos de estímulo econômico terão efeitos por muito tempo pela frente. As mudanças climáticas devem estar no centro dessas escolhas e, por extensão, o transporte deve desempenhar um papel de destaque.

Colocar em prática essas cinco recomendações em conjunto trará uma série de benefícios, incluindo a criação de empregos, melhora na segurança viária e na qualidade do ar, economias revitalizadas, entre muitos outros. Colocar a mobilidade equitativa e de emissão zero à frente e no centro das ações aumenta as chances de entregarmos um mundo melhor aos jovens de hoje e às futuras gerações.


Este artigo foi publicado originalmente no Insights.