Logo que um bebê começa a se movimentar pela casa, a família adapta esse ambiente para garantir proteção e as melhores condições para o desenvolvimento do filho. Conforme a criança cresce, novas adequações são feitas, sempre tendo como objetivo tornar o lar um local acolhedor, seguro e estimulante. Na cidade, as ruas, praças e parques são uma extensão da casa. E, como na casa, esses espaços públicos devem acolher e proteger as crianças, estimular o seu desenvolvimento e, ao mesmo tempo, convidá-las a experimentar a cidade.

Infelizmente, as cidades brasileiras em muitos casos não oferecem ruas e espaços de lazer adequados para as crianças. Isso é especialmente verdade nas regiões de renda mais baixa, onde as crianças dependem dos espaços públicos para atividades de lazer e acesso a equipamentos básicos de educação e saúde. Tampouco o deslocamento das crianças para ir à escola, ou mesmo aos espaços públicos, é sempre seguro.

No Brasil, em 2019, foram registrados 2.609 óbitos por causas externas entre crianças de zero a nove anos. Segundo o Ministério da Saúde, “acidentes de transporte” são a segunda causa de óbito nessa faixa etária, representando 21,8% dos registros, com 568 óbitos. Desses, mais da metade compreende crianças de zero a seis anos (Datasus). Apenas na cidade de São Paulo, em 2018, foram 227 sinistros de trânsito envolvendo crianças com idade inferior a cinco anos, o que mostra que o desafio em tornar a cidade amiga das crianças passa por projetar espaços públicos adequados, assim como o trajeto até eles. É preciso mudar esta realidade.

A cidade para as crianças é melhor para todos

A primeira infância – entre zero e seis anos de idade – é um período crucial para a saúde, o aprendizado, o desenvolvimento e o bem-estar social e emocional das crianças. Estudos científicos apontam que as primeiras experiências vividas na infância estabelecem a base para o desenvolvimento integral de meninas e meninos. A Unicef destaca que investimentos destinados a essa fase retornam em impactos positivos para toda a sociedade. Investir na qualidade do espaço público e viário com foco na primeira infância no presente é, portanto, investir no futuro das cidades e das pessoas.

E não se trata “só” da infância: planejar e construir cidades tendo como parâmetro a vulnerabilidade de uma criança resulta em cidades seguras e funcionais para todas as pessoas. Essa perspectiva deve servir de base para políticas públicas e projetos urbanos, que vão influenciar a qualidade de vida de muitas famílias.

Espaços públicos com foco na infância em São Paulo


Na busca por assegurar os direitos e o desenvolvimento integral de crianças entre zero e seis anos, São Paulo aprovou em 2018 o Plano Municipal pela Primeira Infância. Entre as várias iniciativas do plano, está o programa Territórios Educadores, que busca transformar áreas de vulnerabilidade social em ambientes seguros, de aprendizagem e estímulo, para crianças e suas famílias. O programa consiste em ações de segurança viária nos principais trajetos percorridos pelas crianças a pé e na implantação de novos espaços de brincar que estimulem o desenvolvimento das crianças e fortaleçam os laços com seus cuidadores e com a cidade.

Desde 2019, o WRI Brasil tem trabalhado junto à prefeitura e a diversas outras organizações no desenvolvimento do programa. Em 2021, a parceria resultou na qualificação de duas praças inseridas em territórios na zona leste da cidade, uma no Jardim Santo André e outra no Jardim Lapena.

As praças receberam brinquedos para as crianças, plantio participativo de mudas, revitalização de paredes e trajetos com pinturas lúdicas. Também foram instaladas áreas de descanso para estimular a convivência da comunidade com as crianças e a pavimentação de caminhos com piso regular para facilitar o uso dos espaços por mães com carrinhos bebês ou para os pequenos que estão aprendendo a andar de bicicleta.

Falta espaço para ser criança

A qualificação de praças como essas é significativa para a melhoria da qualidade de vida da população local. Tão importante quanto, é assegurar que as crianças e seus cuidadores possam acessar esses espaços de convívio com segurança. No futuro, o entorno das praças também poderá receber intervenções de segurança viária. A qualificação dos dois espaços, no entanto, é significativa para qualificar esses territórios. Afinal, na falta de espaços de lazer qualidade, as crianças vão brincar no meio da rua – e se esta é uma lembrança revestida em nostalgia para muitos adultos, tornou-se uma realidade preocupante em nossas cidades, onde carros circulam em velocidades perigosas.

É o que ocorre na rua Miguel Ferreira de Melo, onde se localizam as intervenções planejadas no Jardim Santo André. A rua concentra nove escolas que atendem 1.255 alunos da primeira infância. Entre 2017 e 2019, nove pedestres foram atropelados na via. Monitoramento realizado em quatro pontos da via registrou comportamentos inseguros no trânsito, especialmente de motociclistas trafegando em altas velocidades.

O elevado número de sinistros de trânsito, a maioria atropelamentos, torna o trajeto motivo de preocupação. Através da ferramenta de monitoramento Quali-Urb Infância, identificamos que a grande maioria dos cuidadores (79,3%) leva as crianças a pé até as escolas. A falta de atrativos para brincar nas ruas e calçadas foi relatada por 82,6% dos cuidadores, e 67,4% consideram que o trajeto até a escola carece de itens como bancos e vegetação. A insegurança e a falta de conforto e estímulos positivos é reforçada pela falta de espaços de brincar onde mães e cuidadores não precisem se preocupar com a presença de carros e o risco de atropelamentos.

No Jardim Lapena, não é muito diferente. Em 2017, a Fundação Tide Setubal desenvolveu com a comunidade um plano de bairro que evidenciou a falta de espaços de encontro e lazer. Para 63% dos moradores, o parque público mais próximo ficava a menos de um quilômetro de distância. Apesar de não estar tão distante, o local não é uma referência para atividades de lazer para a população do bairro, além de ser inacessível para crianças em idades de zero a cinco anos. Em geral, as crianças costumavam brincar na rua ou então utilizavam os brinquedos do pátio do Centro de Educação Infantil (CEI) apenas nos horários que não havia alunos, situação distante do ideal.


<p>comunidade participa de diagnóstico</p>

Consultar comunidade é crucial para identificar desafios e soluções (foto: Leu Britto - Monomito Filmes/WRI Brasil)

Planejando junto com a comunidade

O reconhecimento das demandas locais e da importância dos espaços públicos para a qualidade de vida das crianças, bebês e cuidadores foi o ponto de partida para a repaginação das duas praças. A participação das comunidades durante o desenvolvimento dos projetos e a implantação das obras foi uma premissa base para a população se apropriar dos espaços ao verem sua identidade refletida neles.

Foi assim que as crianças do Jardim Lapena foram convidadas a sonhar com um parque a ser implantado em um terreno baldio ao lado do CEI. Elas já brincavam ali, em meio a sujeira e mato. Identificou-se, então, potencial na transformação desse terreno em um espaço qualificado de lazer e desenvolvimento infantil e um lugar de encontro para toda a comunidade. Este local foi nomeado de Parque dos Sonhos pelas crianças da escola.

Mapeamento e articulação de atores

A pandemia da Covid-19 impôs restrições ao processo de mobilização e engajamento da população local. Apesar disso, organizações locais, mães, pais e cuidadores, além de outras pessoas das comunidades participaram ativamente de diversas etapas da implementação das intervenções.

Parte do sucesso do processo é atribuída ao mapeamento prévio de atores locais que poderiam contribuir com o projeto, influenciar as decisões e engajar outros atores e moradores para participação. A influência de diretoras de duas escolas contribuiu para a articulação com os moradores e as atividades do projeto. Atribuir papel de liderança a atores locais foi importante para que a participação da população ocorresse da forma mais ampla possível.

Cuidado com o que é nosso

A participação da comunidade em todas as etapas incentiva a identificação das pessoas com os locais, de forma que reconheçam que essa conquista é delas e por isso também são responsáveis por cuidá-la. Nas duas praças, a comunidade e as crianças apoiaram atividades de limpeza e a pintura dos novos espaços.


<p>comunidade fez mutirão para qualificação</p>

Mutirão de pintura do Parque dos Sonhos (foto: Leu Britto - Monomito Filmes/WRI Brasil)


No Jardim Lapena, a comunidade, incluindo cuidadores e crianças, participou de mutirões para melhorar as condições do terreno antes e durante as obras. A diretora da escola criou, também, um conselho de moradores e um conselho mirim formado pelas crianças. Juntos, dividem a tarefa de guardiões do Parque dos Sonhos.

Organização prévia é facilitador

Identificar as redes e as condições de articulação já existentes na comunidade é fundamental para uma estratégia de participação e transformação assertiva. A existência de grupos já organizados facilita o processo de articulação e participação dos atores locais. Foi assim no Jardim Lapena, que já contava com forte presença da Fundação Tide Setubal e é uma referência municipal de comunidade que desenvolve projetos participativos. Conquistas significativas, como a própria implantação do CEI e o desenvolvimento do Plano de Bairro, resultaram desse engajamento.

No Jardim Santo André, foi fundamental o apoio das escolas para um envolvimento efetivo de cuidadores e crianças no projeto. A proximidade e o contato prévio entre as escolas da região facilitou sua organização como um grupo coordenado para demandar melhorias, especialmente para o trajeto rotineiro que grande parte das crianças faz a pé.


<p>menina pinta o chão</p>

Crianças foram envolvidas na qualificação em Jardim Santo André (foto: Leu Britto - Monomito Filmes/WRI Brasil)

Monitoramento para verificar impacto

Os primeiros resultados colhidos, no Jardim Lapena, são animadores e sugerem um uso mais equitativo, inclusivo e diverso do espaço. Antes da implantação do Parque dos Sonhos, praticamente apenas meninos brincavam no terreno. O monitoramento identificou um aumento substancial na utilização por meninas, que passaram a ser maioria no espaço. A presença de pais e cuidadores também aumentou, com oito vezes mais pessoas da comunidade acompanhando as crianças nas atividades. Com as novas possibilidades do espaço e a maior diversidade de frequentadores, também se diversificaram as brincadeiras. Novas ações de monitoramento serão importantes para verificar se, a médio prazo, os impactos se mantêm, e se a comunidade tem cuidado do espaço como planejado.

Comprovar os benefícios e documentar os aprendizados e processos é fundamental para que intervenções como as realizadas no Jardim Santo André e no Jardim Lapena possam ganhar escala em São Paulo e inspirar outras cidades. Além disso, o monitoramento auxilia na definição dos próximos passos. É o caso de Jardim Santo André, em que resta o desafio importante de tornar mais segura a rua Miguel Ferreira de Melo, que conecta a praça às escolas da região.

Cidades em que crianças podem ser crianças

Para inserir a perspectiva da criança no planejamento urbano é preciso planejar com as próprias crianças. Incentivar que crianças e cuidadores frequentem espaços públicos e adotem hábitos mais saudáveis de deslocamento no seu dia a dia passa por tornar suas rotas confortáveis e seguras para caminhar, pedalar, correr, explorar, brincar.


<p>comunidade comemora implantação do parque dos sonhos</p>

Comunidade celebra construção do Parque dos Sonhos (foto: Leu Britto - Monomito Filmes/WRI Brasil)


O WRI Brasil é signatário do manifesto “A Cidade do Sim”, da Cidade Ativa. Um trecho do manifesto resume as inquietações de quem lida com temas da mobilidade e da infância nas cidades: “Como mães, pais e cuidadores estamos acostumados a medir, avaliar e gerenciar riscos, ponderando quando vale a pena arriscar um ‘sim’, deixando a criança escalar uma pedra, andar em uma mureta, subir em uma árvore. Mas e quando não temos opção, e quando quase tudo o que vemos lá fora são ameaças à saúde e bem-estar de nossas crianças? É justo que sejamos nós os responsáveis por assumir o risco de uma criança ser atropelada, ou que ela fique doente por brincar em uma rua com lixo ou esgoto a céu aberto? Por que nossas cidades não podem ser mais seguras, saudáveis, confortáveis para as crianças, jovens e famílias? Por que elas não podem ser lugares onde podemos dizer, com confiança, mais ‘sim’ do que ‘não’?”

Uma cidade amigável para as crianças permite que elas andem a pé ou de bicicleta para a escola, porque as travessias são seguras para a velocidade de seus passos mais curtos, as calçadas são uniformes e espaçosas; permite que tenham contato com vegetação, que respirem um ar limpo, que brinquem sem que lixo ou esgoto prejudique a sua saúde. Nos espaços públicos pensados para as crianças, elas podem tocar, pegar, sentir, se sentar, subir nas coisas ao redor delas, porque isso é estimulante, ajuda o desenvolvimento infantil e a sua autonomia.


O WRI Brasil agradece aos diversos parceiros, organizações e pessoas que se envolveram ao longo do processo relatado neste artigo.