Ao longo de 2020, diversas universidades e organizações conduziram pesquisas na tentativa de entender melhor as novas tendências de mobilidade geradas pela pandemia de Covid-19. Em todos os estudos, um consenso: o transporte coletivo foi o mais impactado. A insatisfação com o serviço ganhou uma nova camada de complexidade com a preocupação das pessoas quanto à higienização e a possibilidade de transmissão do vírus. É hora de ouvir os passageiros.

Pesquisas quantitativas como as realizadas são ótimas para se fazer diagnósticos e análises objetivas e apontar tendências, mas também têm limitações na hora de revelar as razões e nuances por trás das respostas. Esta é uma das possibilidades das pesquisas qualitativas.

Recentemente, a Imagina Processos Criativos conduziu um grupo de escuta dentro das atividades do Programa QualiÔnibus, para entender a experiência e as percepções das pessoas sobre o transporte coletivo antes e durante a pandemia. As ideias e reflexões geradas podem fundamentar ações mais efetivas e conectadas com as expectativas dos clientes.

Clientes do transporte coletivo em foco

A escuta é um exercício poderoso que permite redescobrir o mesmo assunto sob diversos pontos de vista. As pessoas trazem, de suas vivências diversas, muitos aprendizados, questionamentos e ideias que podem inspirar inovações. Também trazem dores e alegrias que não são exclusivas: são sentidas por outras pessoas próximas a elas ou com vivências similares.

Conduzir um grupo de escuta também permite acessar percepções de pessoas que muitas vezes têm sua representatividade apagada e, assim, construir ações que beneficiem a todas e todos e não apenas a "pessoa padrão". Melhorar continuamente a experiência e o engajamento das pessoas com o serviço passa necessariamente por escutá-las, e esta é uma prática consolidada no campo da inovação. A sociedade é diversa, e provedores do transporte coletivo devem estar atentos a essa diversidade para contemplá-la em suas ações.

Reimaginando o transporte coletivo: E se...?

Para entender as experiências e percepções das pessoas sobre o transporte coletivo antes e durante a pandemia, foi formado um grupo de escuta com 12 clientes de 9 cidades brasileiras. A seleção teve como premissa a diversidade, priorizando pessoas com características diferentes entre si, que mantiveram ou interromperam o uso do ônibus durante a pandemia, para abranger realidades e percepções também diversas.

Essa multiplicidade de pontos de vista gerou reflexões e ideias para a construção de uma narrativa e práticas que inspirassem mais confiança na utilização dos ônibus e fortalecessem a sua imagem. A escuta do grupo serviu de base para a construção de hipóteses. Foram elaborados 9 cenários “E se...”: propostas de ação que levaram em conta a subjetividade de quem usa o transporte coletivo.

O processo não busca ditar o que deve ser feito, mas subsidiar e instigar o pensamento sobre soluções, abrindo novos caminhos para o transporte coletivo enfrentar desafios novos e antigos. É o caso dos dois exemplos a seguir.

E se os passageiros vissem os ônibus sendo limpos?

“Eu ando no ônibus, coloco a mão na cadeira ou até mesmo no lugar para segurar e sinto que o vírus está naquele lugar, fico doida pra descer logo, para passar álcool.”
Mulher negra, 42 anos, usando ônibus na pandemia

"Minha mãe é idosa. Eu não queria ser vetor e fiquei neurótico. Quando precisei sair e meu amigo não podia me levar de carro, eu entrava no [carro por aplicativo] igual a um tiranossauro rex, com as mãozinhas encolhidas puxando a maçaneta pelo dedo mindinho e passando álcool todo o tempo."
Homem branco, 33 anos, não está usando ônibus na pandemia


O que vemos tem uma influência muito grande em nossa percepção e confiança no sistema. A higienização dos ônibus ocorre nos bastidores e é invisível para a maioria das pessoas. Apesar de saberem pelos canais de comunicação que o transporte coletivo está sendo higienizado, há clientes que desconfiam de que isso esteja mesmo acontecendo. E se os passageiros vissem profissionais higienizando os veículos durante a viagem ou nos pontos de ônibus?

E se o passageiro tivesse o mesmo status do motorista do carro e fosse tão bacana quanto o ciclista?

"Na minha cidade, nunca fizeram um trabalho de conscientização [sobre a importância do transporte coletivo]. Acredito que a conscientização social tem sua relevância, especificamente quanto à mobilidade urbana. Deveria ser trabalhada nas escolas, instituições públicas, privadas e filantrópicas. Penso que a má qualidade nos ônibus, as atitudes inadequadas nos coletivos, já se tornaram culturais, e precisamos mudar isso."
Homem negro, 46 anos, cego, não está usando ônibus na pandemia.


Campanhas de comunicação bem-sucedidas mudam comportamentos, influenciam a linguagem, alimentam conversas cotidianas e são lembradas por muito tempo pelas pessoas. Foi um desejo comum uma campanha que valorizasse o cliente do transporte coletivo – assim como motoristas de carro e ciclistas são valorizados.

A importância do ônibus como direito e como escolha sustentável é reconhecida – é um meio de transporte que, como a mobilidade ativa, gera muitas externalidades positivas: benefícios para toda a sociedade, ao contrário do que ocorre com o carro. Apesar das dificuldades, participantes do grupo de escuta demonstraram uma relação de afeto com o ônibus. Mas não sentem que sua contribuição para o uso eficiente do espaço viário e a redução de poluição e emissões é reconhecida ou estimulada.

Operadores e poder público têm a oportunidade de colaborar na elaboração de ações de comunicação para impulsionar a transformação e colocar o transporte coletivo como prioridade. E se fossem realizadas grandes campanhas, não restritas ao ambiente do transporte coletivo, mas que alcançassem toda a população? E se tivessem caráter educativo e formativo e fossem levadas para dentro das escolas?

Oportunidade para qualificar o transporte coletivo

O grupo de escuta confirmou que a pandemia adicionou uma nova camada de complexidade na busca por um transporte coletivo de qualidade. Mas muitos dos pontos levantados são desafios e reivindicações antigas, de quando não havia preocupação com o contágio: lotação dos ônibus, assédio, entendimento sobre o cálculo da tarifa, transparência.

Embora sejam reivindicações já conhecidas, ouvi-las dos clientes em uma conversa franca e aberta permite aos provedores do transporte coletivo entender as expectativas de forma mais ampla, profunda e humana, e assim pensar soluções mais próximas da realidade das pessoas. Os clientes querem saber – e, especialmente, ver – que o transporte coletivo é usado por quem o planeja e opera, ou seja, não querem um serviço planejado para “os outros”, mas para todos nós.

Ouvir com curiosidade, entender, sem julgamentos, a percepção das pessoas sobre o sistema – que nem sempre corresponde exatamente a como o sistema funciona e é planejado. Mais do que buscar uma resposta pronta, conduzir uma conversa aberta com um grupo de pessoas pode ser a base para a inclusão de novos pontos de vista e a geração de novas ideias em prol da mobilidade urbana. Esse pode ser também um exercício transformador para agências de transporte e operadores do transporte coletivo.


Programa QualiÔnibus

Este post faz parte de uma série de conteúdos produzidos a partir dos debates possibilitados pelo Grupo de Benchmarking QualiÔnibus. O Programa QualiÔnibus é desenvolvido pelo WRI Brasil com o apoio financeiro e conceitual da FedEx Corporation e tem o objetivo de qualificar o transporte coletivo por ônibus nas cidades brasileiras. Leia mais conteúdos sobre o programa aqui.