Nas últimas duas décadas, Pierre-André Martin viu as soluções baseadas na natureza (SBN) mudarem de lugar. Antes encarada como “algo meio hippie”, a perspectiva de que a natureza deve ser um elemento estruturante das cidades é hoje abraçada por metrópoles como Paris, Londres e Seul. Nos grandes fóruns climáticos, as SBN são tema de discussão e ação recomendada para mitigação e adaptação. Seja em pequenos jardins de chuva ou em grandes projetos de requalificação urbana, a natureza está voltando à cidade.

Martin acredita que, embora atrasado, o Brasil vive um momento de inflexão. Francês, radicado no Rio de Janeiro, o paisagista ecológico tem experimentado este movimento lá e cá. Atuou em projetos sustentáveis no Canadá, Peru, Angola e outros países. Na capital fluminense, participou da restauração da orla do Parque Olímpico da Rio-2016. Mais recentemente, foi um dos projetistas do Parque Orla Piratininga, que recuperou uma região emblemática de Niterói usando SBN e outras técnicas ecológicas.

Mentor da primeira fase do Acelerador de Soluções Baseadas na Natureza em Cidades do WRI Brasil, Martin acredita que a iniciativa chega em uma hora muito estratégica, em que o Brasil precisa de casos executados para "mostrar e comprovar” a eficácia das SBN.

logo do Acelerador de SBN

Este artigo compartilha conhecimentos do Acelerador de Soluções Baseadas na Natureza em Cidades. Clique aqui para saber mais sobre a iniciativa.

“Estamos em um momento em que temos que batalhar muito para as coisas acontecerem. Temos uma máquina que ainda entende que concreto, aço e vidro são o que há de mais moderno. O século 21 é o [século] de pensar soluções ecológicas. É um fato, não podemos ter dúvidas quanto a isso. Já estamos sofrendo com alagamentos e desastres naturais, não há mais o que esperar”.

Na entrevista a seguir, Pierre compartilha experiências e reflexões sobre o planejamento, a implementação e a gestão de projetos de SBN.

Como foi a experiência com o Acelerador de SBN em Cidades?

Pierre-André Martin: A experiência foi muito positiva. Estou nessa batalha [de promover as soluções baseadas na natureza] desde 2008, era um assunto muito alternativo na época, percebido como uma coisa meio hippie. A gente vê no mundo inteiro o tema andando, com projetos milionários em Paris, Londres, Seul, e o Brasil ainda se arrastando em conversas muito antiquadas. Há uma resistência do setor público quanto ao conhecimento técnico que dá base às SBN. Mas hoje em dia, há muita gente preparada, é um momento de inflexão. O WRI está chegando com o Acelerador em uma hora muito estratégica, em que precisamos de casos executados para podermos mostrar e comprovar. Achei a experiência ótima, por estar agindo junto ao setor público. O setor privado já está pronto.

pessoas reunidas em um parque
Pierre (ao centro) durante visita do Acelerador ao Parque Orla Piratininga (foto: Diego Padilha-Yantra Imagens/WRI Brasil)

Qual é o desafio mais evidente que as cidades enfrentam para implementar SBN?

Projetos de SBN sempre têm questões complexas – técnicas, legais, orçamentárias, políticas, sociais –, e uma coisa afeta a outra. O problema é quando a gente só enxerga a etapa em que estamos. Os projetos sofrem com a fragmentação de etapas.

Uma situação comum: a equipe faz um levantamento e [elabora] um programa, mas essa equipe em seguida muda por questões políticas, e entrega [o projeto] para outra equipe, mas a nova equipe não entende o projeto. Depois esse projeto cai em uma equipe de fiscalização, que não entende a vocação daquilo e modifica o projeto. E, por fim, ninguém pensa em como isso vai ser mantido. Meu papel no Acelerador foi muito o de mostrar essas coisas que não podem ser esquecidas, dar uma visão até o horizonte. A parte técnica a gente consegue resolver, não é o mais importante. O importante é a gestão de projeto.

Quais os diferenciais dos projetos de Campo Grande e Maranguape, que passaram à segunda etapa do Acelerador?

As equipes têm ótimo nível técnico. São projetos com pensamento sistêmico, que conseguem olhar múltiplas escalas, do macro ao micro e o meso, o que é fundamental quando falamos de soluções para territórios. As propostas têm isso bem embasado. Ao mesmo tempo, elas têm uma clara visão transdisciplinar, do técnico, social, jurídico e orçamentário, um cronograma preparado. 

Com pensamento sistêmico, você consegue desmembrar seu projeto e executar as partes dele de forma independente, se necessário. É algo importante que a gente nota. A gente vê nestes projetos um pensamento aplicado à malha urbana, nas ruas, com jardim de chuva e biovaleta, por exemplo, e ao mesmo tempo com propostas de parques funcionais, maiores e com maior complexidade, com armazenamento de água, horta, nichos ecológicos, programas sociais. São visões para modificar malhas urbanas e complementar com parques municipais.

Na sua experiência, como lidar com as dificuldades inerentes ao poder público?

"É preciso pensar em uma governança compartilhada que permita atravessar esse tipo de mudança política"

Acho que o Brasil tem uma fragilidade de continuidade, o prazo dos mandatos políticos é curto e há uma cultura de jogar fora o que foi feito pelo governo anterior. É preciso pensar em uma governança compartilhada que permita atravessar esse tipo de mudança política, com operações mais simples, baratas e menores, que tenham maiores chances de ser implementadas do que grandes planos. É melhor pensar em dez pequenas operações do que uma grande, porque as grandes levam tempo, que é o ingrediente que mais está em falta. 

Que dificuldades decorrem do caráter inovador das SBN?

Você terá alguns desafios. Tem os gabaritos públicos, por exemplo, uma tabela fornecida pelo governo com itens e materiais de construção precificados. Algumas SBN não entram nessas tabelas. Não temos jardins de chuva nessas tabelas, é preciso decompô-los. [Para certos itens], pode ser preciso pedir muitos orçamentos, mas não existirem muitos fornecedores. 

Eu tenho aconselhado as secretarias a fazer metas pouco arrojadas no início, para não errar. Muitas vezes é preciso tratar uma zona de alagamento na cidade, por exemplo, e um jardim de chuva não é um ralo mágico. É preciso projetar soluções que deem conta, até para não ridicularizar as SBN, reforçando uma imagem de que aquilo não dá certo… As maiores empresas de engenharia do mundo estão vendendo essas soluções de primeiro plano, antes de oferecer soluções cinzas [de engenharia tradicional, com aço e concreto].

Você trabalhou no Parque Olímpico do Rio, no Orla Piratininga, no Parque Realengo. Poderia compartilhar insights desses processos?

"Todos os parques são histórias humanas em cima de um território. É sempre sistêmico"

Todos os parques são histórias humanas em cima de um território. É sempre sistêmico. A gente sempre tem uma questão financeira, uma questão técnica e uma jurídica ali, isso não muda. O grande desafio é criar um lugar específico e particular. Quando a gente trabalha com território, precisamos respeitar muito o lugar. O local é um ator do projeto maior que o projetista. A população, a flora, a fauna e a cultura local… O projeto tem o desafio de não atropelar essa delicadeza que o local tem. Há registros culturais, uma árvore onde as pessoas costumam se reunir… É um aprendizado você ser humilde e valorizar o local, tomar cuidado com o ego.

Qual o peso do processo participativo, da cocriação, em um projeto de SBN?

É imprescindível. Não podemos mais projetar sem participação. O problema é que isso tem um custo de tempo, principalmente. Para um processo legítimo, você precisa envolver a população em todas as etapas. Já participei de projetos com cinco etapas, seis momentos com a população, até o final do projeto, com a comunidade assinando junto com os projetistas, e isso é bonito. Você sabe que está com o lugar, por isso é importante o planejamento. É comum o tempo de coparticipação ser menor por questões de prazos e mandatos políticos.

Você enfatiza escolas e eventos comunitários como bons pontos de interação com a comunidade.

Totalmente. Se você quer que o adulto escute, é mais fácil ele escutar o filho dele. Temos inúmeras redes em um território, de saúde, mobilidade, de educação. Aproveitar essas redes municipais é muito interessante, a escola começa a se relacionar com o território. Na Europa, é mais comum ver o setor público trabalhando mão a mão com cidadãos, inclusive crianças. É algo que pede espontaneidade, entender que não precisa ser uma obra com cordão de isolamento, prefeito e especialistas, algo fora da realidade. É importante um pensamento mais horizontal, evitar ficar apenas no âmbito de elites intelectuais. A população se sente contemplada.