O que define uma cidade inteligente? Equipamentos urbanos conectados para gerar eficiência? Serviços disruptivos de transporte e hospedagem? Inteligência em rede a serviço da inclusão e da equidade? Desde agosto, a Carta Brasileira para Cidades Inteligentes tem mobilizado diferentes atores para responder a essas e outras questões. O texto, com conclusão prevista para maio deste ano, deve pactuar uma visão sobre smart cities no contexto brasileiro. E pavimentar caminhos para que a transformação digital seja sempre aliada – e nunca empecilho – do desenvolvimento urbano sustentável.

Uma vez concluída, a Carta será matriz de diretrizes para a elaboração de políticas públicas, a implementação e o financiamento de projetos de cidades inteligentes pelos municípios, além de alimentar a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano. Até lá, um dos desafios do processo é superar acepções rasas que o termo suscita desde que entrou em voga há alguns anos, e conciliar visões por vezes divergentes sobre o que é – e a que fim serve – uma cidade inteligente em um país desigual como o Brasil, em um cenário global com desafios adicionais como as mudanças climáticas.

Aspectos da diversidade territorial (disparidades regionais, urbanas e digitais), governança para cidades inteligentes, comunicação estratégica, infraestrutura e segurança cibernética, transformação da economia urbana, regulação e legislação, e impactos sistêmicos da digitalização nas cidades têm sido discutidos em grupos de trabalho (GTs) formados por integrantes de entidades públicas, privadas e da sociedade civil, incluindo o WRI Brasil. O processo colaborativo é liderado pelo Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), com participação dos ministérios da Ciência, Tecnologia, Informação e Comunicações (MCTIC) e do Meio Ambiente (MMA).

Muito “smart” para pouco “cities”

Sabe-se que a transformação digital e as mudanças climáticas estão entre as megatendências que impactarão as cidades nas próximas décadas. Pactuar uma visão comum sobre cidades inteligentes no contexto brasileiro é crucial para o futuro de nossas cidades e para a articulação de políticas, programas, iniciativas e investimentos públicos que permitam às cidades navegarem neste mundo em transformação protegendo as parcelas mais vulneráveis da população.

É preciso adequar processos pelos quais governos e sociedade incorporam e respondem às inovações tecnológicas para garantir que o dinamismo da tecnologia ajude a solucionar, e não agrave desafios históricos, como a iniquidade e o acesso precário a infraestruturas básicas. Também não se pode pôr em risco a privacidade pessoal e de dados, a cidadania e a segurança da população.

“Tem muita gente falando de cidades inteligentes sem entender do tema de cidades, e isso começa a capturar a discussão sobre desenvolvimento urbano de um jeito torto: permanecem nossas velhas questões, de desigualdade, provisão de infraestruturas básicas e outras questões da nossa formação urbana. Não se pode deixar essa pauta de lado. Temos de construir uma visão que integre a dimensão da tecnologia às demais, e não as substitua pela tecnológica”, pondera Ana Paula Bruno, coordenadora-geral de Apoio à Gestão Regional e Urbana, setor do MDR responsável por gerenciar as colaborações à Carta.

Diversidade territorial e tipologia de cidades

Cidades inteligentes não são uma panaceia tecnológica composta por doses generosas de câmeras de segurança, veículos autônomos e geladeiras que vão às compras. A receita é mais complexa, e o Brasil não será o primeiro país a confrontar o conceito com desafios como resiliência diante das mudanças climáticas, desigualdade de oportunidades e os riscos à privacidade que decorrem da própria tecnologia na ausência de mecanismos de transparência e regulação.

Na Alemanha, uma carta com propósito semelhante à brasileira definiu uma smart city como agradável de se viver, diversa e aberta, participativa e inclusiva, eficiente, neutra em carbono, competitiva e próspera, aberta e inovadora, responsiva e sensitiva, segura e com liberdade. A lista revela expectativas que vão muito além dos dispositivos tecnológicos a que tem sido associada a cidade inteligente.

Se para os alemães uma preocupação marcante foi a inclusão dos idosos na transformação digital, garantindo que eles conseguissem acessar os serviços e a infraestrutura digital, no Brasil a maior preocupação é com a inclusão socioeconômica, que pode deixar cidadãos de fora da cidade a depender das suas condições de acesso à tecnologia. Uma smart city não é só diferente na Alemanha e no Brasil: o termo tem significados e repercussões distintas ao longo do território nacional.

A Carta segue premissas da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, política-mãe das demais políticas urbanas, cuja elaboração também deve avançar em 2020. Uma delas é que a “inteligência” de que uma cidade pode se beneficiar depende de características territoriais, culturais e socioeconômicas específicas. As disparidades regionais nesses diferentes aspectos devem ser levadas em conta na elaboração de políticas, programas e iniciativas governamentais.

Ana Paula dá um exemplo simples: imagine como são desafios distintos levar infraestrutura digital para São Paulo e para a região amazônica. “É óbvio, mas tem repercussão na política pública. Se partimos do princípio de que precisamos ter conectividade em todos os lugares, vamos atender isso de forma diferenciada [dependendo das características de cada cidade]”, explica a urbanista. “O mesmo raciocínio se aplica a uma tipologia de cidades. Por exemplo, cidades que funcionam como hubs de articulação no território, que prestam serviços regionais, precisam de infraestrutura mais robusta. Para um município pequeno e pouco dinâmico, a agenda pode ser muito mais simples, como a digitalização de serviços públicos de cadastro”, completa.

Para a PNDU, o MDR contratou o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), responsável por tratar da diversidade territorial e das tipologias de cidades. Para alimentar a Carta, discussões e conhecimento técnico sobre o tema têm sido consolidados pelo GT de diversidade territorial, sob coordenação de Laura Azeredo, analista de Desenvolvimento Urbano do WRI Brasil. “É fundamental abordar os temas setoriais de forma integrada, sempre considerando a diversidade dos cidadãos e dos territórios brasileiros. Mais do que um projeto de tecnologia urbana, a cidade inteligente deve ser vista como uma política pública, e a Carta Brasileira para Cidades Inteligentes vai nessa direção”, avalia a urbanista.

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Criação colaborativa inclui oficinas com integrantes dos GTs (foto: Fred Fiúza/MDR)

Municípios e tecnologia caminhando juntos

As diretrizes da Carta também poderão orientar municípios na implementação de instrumentos mais dinâmicos de planejamento urbano. “Na era digital as mudanças ocorrem em velocidade muito grande e em espaço não regulado, e o planejamento vai a reboque. Como integrar essa velocidade no processo de planejamento? Como fazer regulação? Como uma cidade pode regular essas novidades?”, provoca Ana Paula.

“Estabelecer um planejamento dinâmico é um pouco pensar quais são questões mais duras, como as grandes infraestruturas de transporte ou drenagem, que precisam de processo de longo prazo, e quais questões são mais moles, em que poderiam se aproximar mais planejamento de gestão. Algumas decisões sobre uso do solo, por exemplo, poderiam estar mais em uma esfera decisória de comunidade”, pondera.

Eventos como a chegada dos carros por aplicativo e dos patinetes compartilhados sem estação exerceram grande pressão sobre os poderes municipais, então despreparados para lidar com as novas tecnologias, suas implicações no território e a forma como alteraram dinâmicas na mobilidade urbana. É também no sentido de preparar as cidades para essas situações que se presta a Carta – e mais amplamente, a nova PNDU.

Processo colaborativo

Segundo Ana Paula, o processo – que já contou com duas oficinas e tem uma terceira prevista para o segundo trimestre – tem sido inovador ao construir uma agenda política de forma colaborativa e não protocolar. “Temos muitos avanços técnicos, os relatórios dos GTs estão excelentes. Vamos entrar no momento de consolidação do texto. Isso tudo é resultado de uma rede que se engajou, e é encorajador”, afirma Ana Paula.

“O processo teve sucesso em juntar a turma ‘tech’ com a turma ‘cidade’. Nos encontros, dá para notar o equilíbrio de atores diversos, das duas áreas. As discussões são ricas e acontecem trocas de verdade: quem é da tecnologia está aberto a aprender sobre planejamento urbano e vice-versa”, avalia a urbanista Laura Azeredo.

A elaboração da Carta integra o Projeto Apoio à Agenda Nacional de Desenvolvimento Urbano Sustentável (Andus), parceria do MDR com a Agência Alemã de Cooperação Internacional (GIZ, na sigla em alemão), financiada pelo Ministério do Meio Ambiente, Proteção da Natureza e Segurança Nuclear (BMU) da Alemanha.