Por muito tempo o setor de alimentos esteve ausente dos debates nas conferências climáticas da ONU – um grande equívoco, considerando as amplas relações entre os sistemas alimentares e o clima.

Alimentos e uso da terra são responsáveis por um terço das emissões globais de gases do efeito estufa. Ao mesmo tempo, os sistemas alimentares de todo o mundo são vulneráveis a secas, enchentes, calor extremo e a outros impactos crescentes das mudanças climáticas. O problema é ainda mais grave em alguns países em desenvolvimento – no Brasil, por exemplo, os alimentos e o uso da terra são responsáveis por 70% das emissões enquanto mais de metade da população convive com algum grau de insegurança alimentar.

A maneira como o mundo produz e consome os alimentos também exerce uma influência considerável em nossas possibilidades de acabar com o desmatamento e reduzir as emissões de metano até 2030, duas metas essenciais para cumprir os compromissos climáticos globais.

A COP28 corrigiu esse erro com uma série de avanços no elo entre sistemas alimentares, segurança alimentar e nutricional, agricultura e clima. Essa foi a COP na qual os alimentos finalmente ocuparam seu lugar como elemento central nos esforços climáticos, com pelo menos seis resultados significativos que podem gerar mudanças transformadoras no setor:

1) 159 países assinaram a Declaração da COP28 sobre Agricultura Sustentável, Sistemas Alimentares Resilientes e Ação Climática

Na COP28, 159 lideranças mundiais assinaram a Declaração sobre Agricultura Sustentável, Sistemas Alimentares Resilientes e Ação Climática. Juntos, esses países representam 68% (530 milhões) dos agricultores do mundo, 75% da população global, 77% da produção de alimentos do planeta, 81% das terras cultiváveis, 83% das emissões globais do setor de alimentos e 83% do PIB agrícola mundial.

Ao assinar a Declaração, os países se comprometem a aumentar a adaptação e a resiliência para agricultores, pescadores e produtores; a garantir segurança alimentar e nutricional por meio de sistemas de proteção social e programas de alimentação nas escolas, entre outras medidas; e a apoiar os trabalhadores do setor agrícola e de alimentos para que possam manter um trabalho digno e inclusivo.

pessoas reunidas em uma feira de alimentos na Tanzânia
Na Tanzânia, pessoas examinam alimentos em um mercado aberto. A Declaração da COP28 sobre alimentos e agricultura visa construir um sistema alimentar global resiliente, mesmo com a agricultura cada vez mais afetada pelo aumento das temperaturas, ameaça diante da qual os países vulneráveis se encontram na linha de frente (foto: Kumar Sriskandan/Alamy Stock Photo)

Essencialmente, a Declaração inclui um chamado explícito aos países para que fortaleçam uma gestão integrada da água utilizada na agricultura e nos sistemas alimentares em todos os níveis, a fim de garantir sustentabilidade no uso. O documento também enfatiza a necessidade de maximizar os benefícios climáticos e ambientais associados à agricultura e aos sistemas alimentares e evitar seus impactos prejudiciais – por exemplo, aumentando a produtividade de forma sustentável, protegendo e restaurando a terra e os ecossistemas naturais, melhorando a saúde do solo e a biodiversidade e substituindo práticas intensivas em emissões por uma produção e um consumo mais sustentáveis. Isso inclui reduzir a perda e o desperdício de alimentos e promover “alimentos azuis” (provenientes de organismos aquáticos) sustentáveis.

A Declaração também exige dos países as seguintes ações até 2025:

  • Integrar a agricultura e os sistemas alimentares em seus planos climáticos nacionais, as chamadas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), assim como nos planos de adaptação e biodiversidade e estratégias climáticas de longo prazo.
  • Revisar e reorientar políticas e apoio governamental – incluindo os US$ 700 bilhões de subsídios agrícolas gastos em todo o mundo a cada ano – para práticas que diminuam as emissões de gases do efeito estufa, potencializem a resiliência e a saúde de pessoas, animais e ecossistemas e reduzam a degradação e a perda de ecossistemas.
  • Ampliar e aprimorar o acesso a todos os mecanismos de financiamento para os sistemas alimentares, incluindo recursos para pequenos produtores.
  • Aumentar o investimento em ciência e inovação, incluindo inovações originadas em comunidades locais e indígenas.
  • Fortalecer o sistema de comércio multilateral para apoiar as metas da Declaração.

A Declaração termina com o compromisso assumido pelos países de reunir seus ministros – da Agricultura, Saúde, Clima, Meio Ambiente, Energia e Fazenda – para debater essas metas e reportar seus avanços na COP29.

Uma declaração como essa, embora não juridicamente vinculante, passa uma mensagem importante. Foi uma das principais pautas da COP28, recebeu ampla cobertura da imprensa internacional e foi considerada um dos resultados mais significativos da conferência.

2) Os alimentos foram incluídos no Balanço Global e na Meta Global de Adaptação

O primeiro Balanço Global – processo que avaliou o progresso das ações climáticas em todo o mundo e estabeleceu o roteiro para os próximos anos – foi ratificado pelos países no encerramento da COP28. O resultado do Balanço Global indicou que o setor de alimentos é crucial para o combate às mudanças climáticas e, em seu preâmbulo, ecoou o Acordo de Paris ao reconhecer “a prioridade fundamental de garantir a segurança alimentar e acabar com a fome, bem como as vulnerabilidades dos sistemas de produção de alimentos aos impactos adversos das mudanças climáticas”.

O que mais aconteceu na COP28?

Na COP28, pela primeira vez as negociações chegaram a um consenso sobre abandonar os combustíveis fósseis, entre outras decisões importantes sobre energias renováveis, perdas e danos e adaptação. Veja os principais resultados da COP28 aqui.

Mas ainda há muito trabalho pela frente para que os alimentos e sistemas alimentares ocupem uma posição central entre os esforços governamentais – e em um nível proporcional ao sinal enviado pela Declaração da COP28.

Os parágrafos 55 e 63(b) da seção sobre adaptação do Balanço Global são passos bem-vindos, fazendo um chamado pela “implementação de soluções integradas e multissetoriais, como gestão do uso do solo, agricultura sustentável e sistemas alimentares resilientes” e pela “produção, fornecimento e distribuição de alimentos resiliente, bem como o aumento da produção sustentável e regenerativa e do acesso a alimentos e nutrição adequada para todos”. Embora infelizmente não haja nenhuma menção explícita a sistemas alimentares na seção sobre mitigação, os parágrafos 33 a 36 – sobre natureza, ecossistemas, oceanos, estilos de vida e padrões de consumo e produção sustentáveis – estão diretamente relacionados aos alimentos e ao uso do solo.

texto da Meta Global de Adaptação também estabelece uma meta para “atingir a produção, fornecimento e distribuição resiliente de alimentos”, o que pode ajudar a colocar o foco das ações nos sistemas alimentares e na adaptação no futuro. Isso é especialmente importante se considerarmos que apenas 0,8% do financiamento climático atual é direcionado para sistemas agrícolas e alimentares de pequena escala, deixando os pequenos produtores expostos e vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas.

3) Foi lançada a Aliança dos Campeões para a Transformação dos Sistemas Alimentares

O Dia dos Alimentos, da Agricultura e da Água na COP28 (10 de dezembro de 2023) foi a ocasião para o lançamento da Aliança dos Campeões para a Transformação dos Sistemas Alimentares. Liderada por Noruega, Brasil, Serra Leoa, Ruanda e Camboja, a coalizão de alta ambição tem o objetivo de impulsionar a implementação da agenda dos sistemas alimentares nesses países, trabalhando em dez áreas prioritárias. As frentes de ação vão desde fortalecer a resiliência e sustentabilidade dos sistemas alimentares até promover melhorias para os meios de subsistência dos produtores e melhorar o preço para os consumidores. A Aliança também vai formar um bloco de nações progressistas que busca acelerar os avanços e aumentar a ambição no contexto multilateral, incluindo a forma como os países irão agir em resposta ao Balanço Global.

Enquanto a Declaração estabelece uma base para todos os países signatários, a Aliança dos Campeões coloca um teto – um norte para as ações que todos os países devem buscar. Por muito tempo, o mundo não tinha uma coalizão tão ambiciosa focada nos sistemas alimentares, semelhante a outras já existentes sobre mitigaçãocarvãonatureza e petróleo e gás. Agora isso mudou.

4) A FAO lançou seu roteiro global para sistemas alimentares sustentáveis

Na COP28, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) lançou um roteiro para transformar os sistemas alimentares visando tanto manter o aumento da temperatura global abaixo de 1,5°C – o limite que a ciência considera capaz de evitar os piores impactos das mudanças climáticas – quanto acabar com a fome, em linha com o ODS 2.

O roteiro da FAO estabelece uma gama ampla de opções, incluindo a necessidade de aumentar a produção agrícola e pecuária de forma sustentável; reduzir as emissões agrícolas de gases do efeito de estufa; criar resiliência; reduzir a perda e o desperdício de alimentos; e mudar as dietas nos países ricos, substituindo a carne por alimentos à base de plantas – tudo isso em um contexto de mudanças no clima e de uma crise contínua de perda de biodiversidade.

pecuária em área desmatada no brasil
Áreas de pastagem de gado em uma fazenda na região da Amazônia brasileira. Na esteira dos avanços para o setor alimentar na COP28, ainda há muitas questões importantes no caminho pela frente. Entre elas, como o Brasil vai gerir o seu setor agrícola após décadas de desmatamento (foto: Paralaxis/iStock)

Esse roteiro é um resultado importante. O documento complementa o relatório do WRI, World Resources Report: Creating a Sustainable Food Future, e o da Coalizão de Alimentos e Uso do Solo, Growing Better. Ambos apresentam soluções variadas para atingir as metas climáticas e de segurança alimentar globais. Com a promessa de novas edições ao longo de 2024, o roteiro da FAO tem o potencial de se tornar um guia para sistemas alimentares positivos para o clima, de forma semelhante ao que o roteiro da Agência Internacional de Energia, IEA Net Zero Roadmap to 2050, faz no setor de energia.

5) Atores não estatais se comprometeram a agir pelos sistemas alimentares

Mais de 200 atores não estatais – entre empresas, cidades, produtores e povos indígenas – se comprometeram a agir pelos sistemas alimentares em uma Chamada à Ação mediada pelos Campeões Climáticos de Alto Nível da ONU, um grupo de vozes influentes na área do clima formado na COP21 em Paris. Trata-se de um posicionamento significativo de uma ampla comunidade de atores e de um dos resultados da Declaração da COP28 assinada pelos líderes mundiais. É importante ressaltar também que algumas das maiores empresas do mundo se comprometeram com a aquisição de produtos de diferentes cadeias de produção produzidos de forma sustentável em 160 milhões de hectares, chegando a um total de US$ 2,2 bilhões em investimento.

6) Foram prometidos mais recursos para soluções voltadas aos sistemas alimentares

Por fim, governos, fundações e outras partes se comprometeram a oferecer apoio financeiro para sistemas alimentares sustentáveis. A ação inclui US$ 519 milhões dos Emirados Árabes Unidos, Fundação Bill e Melinda Gates e Bezos Earth Fund, entre outros. Os recursos serão destinados para a próxima fase do CGIAR – um consórcio global de pesquisa agrícola com sede em Roma –, além de investimentos para reduzir as emissões da pecuária e da perda e desperdício de alimentos.

Esses e outros compromissos financeiros são um indicativo importante de que os governos e o setor filantrópico irão apoiar as agendas de clima e alimentos. Uma Cooperação Técnica Colaborativa envolvendo diversos órgãos relevantes, como FAO e Banco Mundial, também se comprometeu a coordenar seu apoio a países parceiros, incluindo os signatários da Declaração.

E quais os próximos passos?

As conquistas para o clima e o setor de alimentos na COP28 dependem agora da urgência e transparência do processo de implementação. Países, empresas, instituições filantrópicas e outras partes envolvidas serão cobradas pelos avanços em relação aos novos compromissos já na COP29, que ocorre no Azerbaijão, em dezembro, e a COP30, no Brasil, em 2025.

A seguir, alguns assuntos para acompanhar ao longo deste ano:

  • Os países desenvolvidos vão reformar suas políticas agrícolas e de subsídios para cumprir as metas da Declaração? Por exemplo, a próxima Comissão Europeia vai promulgar uma Estrutura para Sistemas Alimentares Sustentáveis e alterar a Política Agrícola Comum para gerar resultados melhores para as pessoas, o clima e a natureza? E as disposições climáticas e agrícolas da Lei de Redução da Inflação dos Estados Unidos serão implementadas nos anos seguintes às próximas eleições nacionais?
  • A 14ª e a 15ª edições do Plano de Cinco Anos da China, que estabelece as políticas nacionais de desenvolvimento do país, vão incorporar os alimentos, sistemas alimentares e a agricultura?
  • O Brasil vai manter a atual trajetória de redução do desmatamento e conversão de ecossistemas vinculada à melhora da produtividade agrícola?
  • As eleições de países tão diversos quanto Reino UnidoIndonésiaMéxico e Índia, que acontecem ao longo dos próximos dois anos, vão trazer compromissos novos e consistentes para os setores de alimentos e uso do solo?
  • Os 159 países que assinaram a Declaração da COP28 vão incluir os alimentos e o uso do solo em suas próximas NDCs, seja como uma medida de mitigação, adaptação e resiliência ou ambos?
  • As NDCs atualizadas vão promover avanços significativos e mensuráveis até 2030?
  • Os planos climáticos desses países irão além de medidas focadas em agricultura e uso do solo para incluir também ações mais amplas nos sistemas alimentares, incluindo a redução da perda e desperdício de alimentos e mudanças para incentivar dietas mais sustentáveis?
  • Os países mais ricos vão fornecer recursos aos mais pobres na escala necessária para ajudá-los a promover uma transição rural justa e a melhorar a resiliência para pequenos produtores?
  • O Fundo de Perdas e Danos estabelecido na COP vai ser canalizado, em parte, para as perdas e danos dos sistemas alimentares?
  • As fundações filantrópicas já comprometidas com os alimentos e sistemas alimentares vão seguir atuando para desembolsar os recursos necessários para promover ações consistentes com os resultados da COP28? E novas instituições somarão forças a esse movimento?
  • A Organização Mundial do Comércio (OMC) vai retomar e avançar as negociações sobre agricultura de forma a evitar o acúmulo e o protecionismo e, em vez disso, promover equidade, resiliência e condições equânimes para os produtores comprometidos a utilizar práticas mais sustentáveis?
  • Os países da recém-formada Aliança de Campeões serão capazes de agir rápido o suficiente para promover avanços internos e, além disso, atuar de forma diplomática para estimular uma maior ação na agenda de alimentos no âmbito da UNFCCC, do G7 e do G20?
  • As empresas vão cumprir seus compromissos de combater o desmatamento e optar por fornecedores de commodities que utilizem práticas mais sustentáveis até 2025?
  • As sociedades como um todo – produtores, consumidores, setor privado, governos e lideranças políticas – vão unir forças para promover mudanças duradouras nos sistemas alimentares, de forma consistente com o espírito das declarações assinadas na COP28?

Em resumo, a COP28 registrou avanços substanciais há muito esperados para o setor de alimentos e para o clima. Agora, o mundo como um todo tem a responsabilidade de transformar essas promessas em realidade e garantir que esse seja de fato um ponto de virada na nossa trajetória.


Este artigo foi publicado originalmente no Insights