A pandemia da Covid-19 teve um impacto significativo na demanda por transporte coletivo. Embora previsível, o baque desafia o sistema ônibus, já em crise nas cidades brasileiras, a buscar novos caminhos de financiamento para manter e reconquistar clientes. No início do mês, cidades e operadores de ônibus compartilharam inquietações e experiências em práticas como gestão da demanda de viagens, priorização em faixas exclusivas e integração com mobilidade ativa, no webinar Como (re)construir um transporte coletivo melhor?, realizado pelo WRI Brasil.

O título da iniciativa do Grupo de Benchmarking QualiÔnibus dá a dimensão do desafio que o setor enfrenta enquanto busca sustentabilidade econômica em meio a quedas de até 85% na demanda e às restrições de ocupação dos ônibus durante o período de isolamento social. O evento teve duas partes: uma mesa redonda e um painel em que São José dos Campos apresentou um modelo inovador de concessão para a operação de ônibus.

Na mesa redonda virtual aberta ao público, Benjamin Kennedy, presidente da Companhia Metropolitana de Transporte Coletivo de Goiânia, Luiz Alberto Saboia, secretário executivo da Secretaria de Conservação e Serviços Públicos de Fortaleza, Richele Cabral, diretora de mobilidade urbana da Fetranspor (RJ), e Rodrigo Tortoriello, secretário extraordinário de mobilidade urbana de Porto Alegre, relataram como cidades e operadores têm se adaptado dia após dia a este cenário.

Adequação em curso

A adequação da oferta do serviço à demanda reduzida tem desafiado as cidades. Porto Alegre tem ajustado a oferta para uma demanda até 74% menor do que no mesmo período de 2019. "Já mudamos mais de 10 mil horários de ônibus. Para tanto, um grupo de técnicos da prefeitura e operadores faz a adequação diariamente", explicou Rodrigo Tortoriello.

Em Goiânia, o modelo troncal com linhas alimentadoras tem sido um desafio à parte. Segundo Benjamin Kennedy, restrições do governo estadual, que proibiu o transporte de passageiros em pé, têm gerado aglomeração nos terminais de integração. "Se tivéssemos 50% da capacidade do veículo, os passageiros ficariam muito menos tempo aglomerados", ponderou o secretário.

Pioneiras no transporte coletivo sob demanda, Goiânia e Fortaleza relatam que o serviço teve queda maior de passageiros do que os ônibus convencionais. Falta um maior entendimento das razões: se é indicativo do receio dos usuários de compartilharem viagens em veículos menores, ou uma consequência ligada a um maior poder aquisitivo dos clientes do serviço sob demanda, que poderiam migrar para o carro com mais facilidade ou realizar suas atividade de casa.

Escalonamento de horários

"Desconcentrar o pico dá mais eficiência econômica à operação e reduz o potencial de transmissão do vírus. É possível que isso fique como um legado pós-pandemia."

Luiz Alberto Saboia

Secretário executivo da Secretaria de Conservação e Serviços Públicos de Fortaleza

Um dos fatores que pode contribuir para a queda na demanda é o receio da combinação de aglomeração e locais fechados. Na opinião de Luiz Alberto Saboia, cidades e operadores devem mitigar riscos, comunicar ações e encontrar, em um cenário financeiro delicado, soluções conjuntas para oferecer um serviço melhor para os clientes. Fortaleza adotou escalonamento de horários, tática de gestão da demanda em viagens – um conjunto de medidas que empresas, cidades e outras entidades podem adotar para otimizar deslocamentos, contribuindo para um uso mais racional e eficiente da infraestrutura de mobilidade.

"Propusemos a desconcentração dos picos das jornadas de trabalho. Construção e indústria começam às 7h, serviços às 8h, setor público às 9h e comércio às 10h. Desconcentrar o pico dá mais eficiência econômica à operação e reduz o potencial de transmissão do vírus. É bem possível e desejável que isso fique como um legado pós-pandemia. Promove ganhos não só ao transporte coletivo, mas para a redução dos congestionamentos na cidade como um todo", ponderou Saboia. Fortaleza também consegue cruzar dados do sistema de saúde com dados do Bilhete Único, o que possibilita rastrear a disseminação do vírus.

Priorização com faixas dedicadas

foto de rua antes e depois da redistribuição do espaço

Av. Mauá, em Porto Alegre, antes e depois da redistribuição do espaço (fotos: Google e César Lopes/PMPA)

As circunstâncias da pandemia geram espaço para que as cidades experimentem novas possibilidades com mais receptividade. É o que muitas cidades do mundo têm feito ao expandir a infraestrutura para bicicletas e pedestres durante a pandemia. Porto Alegre pretende ampliar a implementação de faixas dedicadas para ônibus durante a pandemia, uma forma rápida e barata de se priorizar o transporte coletivo. "Já tínhamos um programa de faixas exclusivas, e recentemente entregamos mais 9 km", disse Tortoriello.

O secretário também anunciou a implantação de mais 13 km até o fim do ano. Segundo ele, a experiência da Covid-19 transformou a cidade em uma "grande faixa dedicada", o que tem permitido a Porto Alegre adequar a oferta, garantindo o atendimento com uma frota menor, demonstrando o potencial desse tipo de intervenção. "Antes da pandemia, a velocidade média no sistema mal batia 22 km/h. Nos dias críticos [do isolamento em] março, a velocidade média subiu para 28 km/h levando em conta toda a rede".

Mobilidade ativa como aliada

foto de ônibus e bicicleta

Fortaleza vê bicicleta como aliada do transporte coletivo (foto: Mariana Gil/WRI Brasil)

Um dos riscos para a retomada pós-pandemia é o crescimento nos deslocamentos por carro e motocicleta. Fortaleza financia parte de sua infraestrutura cicloviária com verba arrecadada da taxação de aplicativos como Uber e 99, e já tem relativa integração da malha cicloviária com terminais de transporte coletivo. Saboia falou da importância de fortalecer essa integração, para evitar um aumento nas externalidades negativas do transporte motorizado individual – das fatalidades no trânsito à poluição e os engarrafamentos

Porto Alegre vem expandindo paulatinamente sua malha cicloviária e tem planos de ampliar a conexão da malha com ciclorrotas temporárias nos próximos meses. Em plena pandemia, a cidade inaugurou o redesenho da avenida Mauá, importante via de acesso à cidade, localizada na região central. Onde havia duas faixas de estacionamento e três de circulação, agora há uma ciclovia bidirecional, uma faixa de estacionamento e quatro faixas de circulação, sendo uma dedicada ao ônibus.

Integração do sistema

"Temos de facilitar ao máximo o pagamento. Queremos buscar passageiros, não criar restrições."

Rodrigo Tortoriello

Secretário extraordinário de mobilidade urbana de Porto Alegre

A criação de infraestrutura de mobilidade é mais efetiva quando há conexão no sistema, promovendo a integração modal. As pessoas têm de poder optar pela forma de deslocamento que lhes pareça mais eficiente e cômoda – e dado o momento de pandemia, a mais segura. Tortoriello falou da possibilidade de, durante a pandemia, táxis atuarem como alimentadores do sistema ônibus, já que nas horas de baixa demanda, poderiam ser um meio mais custo-efetivo. Papel semelhante poderia ser cumprido por vans sob demanda como as que operam em Goiânia e Fortaleza.

A integração tarifária é outro ponto importante. Tortoriello destacou a necessidade de implementar o uso do cartão de contato e outras formas modernas de pagamento. "Queremos buscar passageiros, não criar restrições", sintetizou.

Novos modelos de financiamento

"Falar do barateamento da tarifa é condição 'sine qua non' para o passageiro voltar."

Richele Cabral

Diretora de mobilidade urbana da Fetranspor

Antevendo o agravamento da crise econômica em decorrência da pandemia, Richele Cabral chamou atenção para o desafio de não aprofundar a crise que atinge o transporte coletivo na última década. "Falar do barateamento da tarifa é condição sine qua non para o passageiro voltar", afirmou.

Os painelistas citaram exemplos de como outros países têm socorrido o setor de transporte coletivo, essencial para o funcionamento das sociedades, e por isso geralmente subsidiado. É uma questão de equidade, como apontou Benjamin Kennedy: "Por que até hoje não se criou um fundo nacional do transporte coletivo, como há para outros serviços essenciais? É um serviço público, tem de ser tratado como tal."

Para Saboia, um fundo do tipo poderia ser alimentado com tributação na bomba de combustível. "Um caminho é taxar quem cria problemas e premiar quem ajuda a solucioná-los. Quem pega ônibus está ajudando a coletividade, polui menos, tem risco de acidente menor, gera várias externalidades positivas. Cada carro ou moto é um veículo a mais a engarrafar, criar poluição, se acidentar", justificou.

"O transporte coletivo é um serviço público, tem de ser tratado como tal."

Benjamin Kennedy

Presidente da Companhia Metropolitana de Transporte Coletivo de Goiânia

Enquanto não há iniciativa do governo federal nesse sentido, cidades buscam os próprios caminhos inspiradas em práticas internacionais e nacionais. Porto Alegre está no processo de votação de um pacote de medidas para garantir sustentabilidade econômica para o transporte coletivo por meio da cobrança de externalidades negativas do uso do carro, incluindo a cobrança de uma taxa para acessar de carro o centro da capital gaúcha.

Um exemplo inovador vem de São José dos Campos. Na segunda parte do webinar, Paulo Guimarães, secretário de mobilidade urbana da cidade paulista, e Ciro Biderman, professor da Fundação Getúlio Vargas, falaram do novo modelo de concessão, que vai integrar o transporte coletivo sob demanda ao sistema, transferir atribuições de bilhetagem dos operadores para fintechs e reduzir outras obrigações das empresas, viabilizando a melhora na qualidade combinada ao barateamento da tarifa. Apresentaremos as novidades de São José dos Campos aqui no blog em breve.

O webinar “Como (re)construir um transporte coletivo melhor?" foi promovido pelo Programa QualiÔnibus do WRI Brasil, que conta com um Grupo de Benchmarking formado por 16 participantes entre líderes de cidades e empresas operadoras para avançar na melhoria dos sistemas com foco no cliente.



Confira o vídeo do evento:



Confira a apresentação do WRI Brasil no evento: