Queda no número de passageiros de ônibus e trens, empregos perdidos, depósitos lotados, mais desigualdade: 2020 trouxe interrupções generalizadas e impactos profundos no setor de transportes. Durante o Transforming Transportation 2021, co-organizado pelo WRI e pelo Banco Mundial, líderes de mobilidade sustentável de todo o mundo e representantes do setor exploraram os impactos profundos do ano passado – o que sabemos e o que ainda estamos aprendendo.

Julian Ware, presidente do Comitê de Economia do Transporte da Associação Internacional de Transporte Público e chefe de grandes projetos de financiamento da Transport for London (principal órgão de transporte londrino), disse que as agências de transportes tiveram quedas de 50% a 80% nas receitas. Os gastos de governos nacionais e locais estão preenchendo a lacuna em muitos lugares, mas o que está menos claro é o que acontecerá a seguir. As pessoas voltarão a usar aviões, trens e automóveis? Trabalharemos de casa com mais frequência? “Essas são mudanças muito mais duradouras na sociedade e realmente não sabemos o que vai acontecer”, disse ele.

São mudanças com implicações tremendas, do acesso a oportunidades e da desigualdade socioeconômica até a sobrevivência das empresas.



Um foco em equidade e gênero

“[A pandemia] está nos desafiando agora a repensar como – e para quem – operam os sistemas de transporte ao redor do mundo”, disse Harriet Tregoning, diretora da aliança NUMO (sigla em inglês para Nova Mobilidade Urbana). “Especialmente quando se trata de acesso, ou da falta dele.”

Grupos de baixa renda e marginalizados, de mulheres a trabalhadores informais, recebem o impacto dos efeitos da pandemia de várias maneiras. A mobilidade econômica está fortemente relacionada à mobilidade física e, em muitos lugares, mulheres e meninas enfrentam "enormes barreiras tanto para empregos quanto para educação" devido ao acesso precário a transporte seguro e acessível, disse Mamta Murthi, vice-presidente de desenvolvimento humano do Banco Mundial.

Um painel composto apenas por mulheres enfatizou a urgência de um transporte com perspectiva de gênero, concordando que é hora de passar de meias medidas – uma agência de trânsito contratando temporariamente uma consultora de gênero, por exemplo – para incorporar integralmente as questões de gênero no planejamento de transporte de forma abrangente.

Lina Fedirko, associada sênior da ClimateWorks Foundation, disse que as emissões de carbono do transporte não poderão ser reduzidas sem que se foque em equidade e em "estratégias intersetoriais em torno da mudança de comportamento e estilos de vida sustentáveis".



Heather Allen, consultora independente de gênero e transporte, destacou um estudo recente sobre mobilidade em quatro cidades da África Subsaariana em meio às medidas de distanciamento da Covid-19. “O que descobrimos foi que a perda de meios de subsistência foi generalizada e muito profunda”, disse ela. “Os empregos das mulheres eram mais propensos a demissões e, mesmo que entrassem em férias coletivas, tinham dificuldade em conseguir receber qualquer salário.”

Mulheres no setor informal experimentaram um “golpe duplo”, disse Allen, porque os mercados e o transporte público foram fechados e muitas dependem do comércio em mercados em torno dos centros de transporte. Então, elas perderam clientes e seus locais de trabalho.

Nos Estados Unidos, as pessoas negras foram desproporcionalmente impactadas pela Covid-19, e o transporte exacerbou o problema. “A maioria das políticas de uso da terra e de transporte dividiram os bairros negros e fizeram do automóvel privado o preço do acesso à economia”, disse Tregoning.

Em Detroit, pouco mais de um quarto dos residentes não tem acesso a um veículo individual, observou Lisa Nuszkowski, fundadora e diretora executiva do MoGo Detroit Bike Share. Para ajudar a melhorar o acesso para residentes de baixa renda, a empresa iniciou um programa piloto com a NUMO e a cidade de Detroit para fornecer 200 bicicletas elétricas para trabalhadores de serviços essenciais que moravam em um raio de 10 quilômetros de seu trabalho e não tinham acesso a um veículo ou transporte público. Também foi criado um sistema de passe anual para quem recebe benefícios do estado que custa apenas US$ 5 por ano.

Em todos os países, “este é um momento para pensar além dos impactos diretos do transporte”, disse Allen. “O transporte é um grande facilitador para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e para o empoderamento das pessoas.”

“Sabemos que ter mais mulheres usando transporte seguro e sustentável vai acelerar a ação contra a mudança climática”, disse Anitha Bhatia, secretária-geral assistente para gestão de recursos, sustentabilidade e parcerias, e diretora executiva adjunta da ONU Mulheres. “Precisamos ter certeza de que a retomada seja orientada à equidade.”

Infelizmente, a maioria dos lugares não está colocando uma lente de gênero nos pacotes de estímulo, disse Bhatia. “É preciso haver um direcionamento muito específico” para as questões de gênero em qualquer pacote elaborado para recuperar sistemas e economias tornando-as mais resilientes, clamou Bhatia, incluindo atenção especial aos trabalhos de cuidados e a pequenas empresas, onde as mulheres estão super-representadas.



Bicicleta, transporte informal e aviação

Uma das primeiras lições da pandemia é que o uso da bicicleta está aumentando. Prefeitos de várias cidades, de Tirana (Albânia) a Shenzhen (China), falaram sobre o lançamento de centenas de quilômetros de novas ciclovias no ano passado para acomodar a demanda crescente.

“O transporte está mudando radicalmente e é provável que para melhor”, disse a prefeita Claudia Lopez, de Bogotá. A capital colombiana se tornou líder mundial em infraestrutura para bicicletas, adicionando 85 quilômetros de novas ciclovias e ciclofaixas durante a pandemia e vendo um aumento na participação modal da bicicleta de 6% para 12% de todas as viagens na cidade.

Mais de 40% da população de Bogotá é de trabalhadores informais que não podem ficar em casa, explicou o secretário de Mobilidade, Nicolás Estupiñán. As ciclovias ajudam a manter as pessoas em movimento e redistribuem o espaço público – as ruas – para que mais residentes possam utilizá-lo.

“Esta é uma questão de sustentabilidade, de transporte, mas foi também uma questão de coragem política, de tentar distribuir o uso do espaço público de forma mais equitativa”, disse Lopez.



O outro lado da moeda é que Estupiñán estima que até três quartos dos novos usuários de bicicletas estão vindo do transporte coletivo, um sinal potencialmente preocupante do que está por vir para o transporte público.

Os chamados serviços de “transporte informal”, como micro-ônibus e tuk-tuks, foram atingidos de forma particularmente dura. “Quase diariamente [os trabalhadores informais do transporte] enfrentam a escolha impossível de fazer seu trabalho e arriscar sua saúde ou perder sua renda”, disse Alana Dave, oficial de transporte coletivo da Federação Internacional de Trabalhadores em Transporte.

Cerca de 90% do transporte coletivo nas cidades da África Subsaariana é fornecido por serviços informais, disse Ben Welle, diretor de transporte integrado e inovação do WRI Ross Centro para Cidades Sustentáveis. Durante a pandemia, estima-se que o fechamento e paralisação do transporte coletivo na África pode ter levado 80 milhões de pessoas a condições de fome extrema.

Olhando para frente, um painel de especialistas defendeu a integração dos serviços de transporte informal como parte da recuperação da Covid-19 em muitos lugares.



Enquanto isso, uma das indústrias mais regulamentadas do mundo também enfrenta a crise. Fang Liu, secretária-geral da Organização Internacional de Aviação Civil, disse que o declínio no tráfego aéreo tem sido impressionante e alertou sobre a necessidade de apoiar as companhias devido à natureza complexa do setor.

Antes da pandemia, as companhias aéreas realizavam mais de 100 mil voos diários em todo o mundo, transportando 12 milhões de passageiros por dia. Em abril de 2020, disse Fang Liu, o tráfego total era de apenas 2% desses números. Mais de 50 companhias aéreas declararam falência no ano passado, e Liu disse que espera mais em 2021. Ela observou que não são apenas as companhias aéreas que estão em jogo, mas também os fabricantes, os aeroportos e todos os provedores de serviços que oferecem suporte ao sistema.

Repensando cadeias de abastecimento

A pandemia colocou tensões únicas nas redes de logística, alterando rapidamente a oferta e a demanda. As vendas globais no varejo online devem crescer de US$ 3,5 trilhões em 2019 para US$ 6 trilhões em 2024, disse Alan McKinnon, professor de logística da Universidade Kuehne-Nagel. Mas em outros setores, como o petróleo, a demanda caiu vertiginosamente. Na verdade, quando a atividade econômica caiu durante os períodos de distanciamento e lockdowns, “pela primeira vez, chegamos perto de esgotar todo o espaço de armazenamento disponível em alguns países”, disse McKinnon. Também houve problemas trabalhistas importantes. Em um dado momento, mais de 400 mil marinheiros ficaram presos no mar devido a restrições de viagem relacionadas à pandemia, disse McKinnon.

À medida que os países intensificam a distribuição de vacinas, resolver esses desafios torna-se ainda mais urgente. “Precisamos nos preparar agora”, disse Claudia Roa, vice-presidente do setor de ciências da vida e saúde da DHL Américas, que fornece equipamentos e suprimentos médicos para a América Latina. O que aprendemos é “a importância de planejar com antecedência e comunicar esse plano a todas as partes envolvidas na distribuição da vacina. E estamos vendo em alguns casos que isso não está acontecendo”. Ela citou problemas com a concentração de equipamentos de proteção individual em apenas alguns países da região e com os suprimentos retidos nas fronteiras nacionais enquanto as pessoas tentavam apressadamente se ajustar.

María del Rosario Oviedo Rojas, representante do vice-ministro dos transportes da Colômbia, reconheceu o papel do governo na criação de um ambiente propício para as empresas de logística. “A pandemia tem evidenciado a capacidade do nosso governo de responder a situações extremas”, disse ela. Ela disse que restaurar a confiança no transporte coletivo é parte da solução, uma vez que esses padrões de viagem afetam toda a rede de transporte do país.

Repensar como as cadeias de suprimentos são gerenciadas também requer repensar como os dados são gerenciados e compartilhados. Sistemas de logística e mobilidade urbana eficientes exigem “agregação de dados e compartilhamento entre várias fontes diferentes”, disse Aman Chitkara, gerente de mobilidade do Conselho Empresarial Mundial para o Desenvolvimento Sustentável. Esses dados podem vir de atores tão diversos como operadoras de transporte público, provedores de mobilidade privada, setor bancário, operadoras de telecomunicações e as próprias cidades.

“A realidade é que quando olhamos para acelerar a adoção da tecnologia do século 20 e encorajar a agregação de alguns elementos de dados do setor público e privado, isso pode levar a resultados significativos de bem comum”, disse Margi Van Gogh, chefe de cadeia de suprimentos e transporte para o Fórum Econômico Mundial.

Mas Paulo Humanes, vice-presidente de desenvolvimento de negócios e nova mobilidade do Grupo PTV, um dos maiores fornecedores de transportes do mundo e patrocinador do Transforming Transportation 2021, observou que precisamos ir além do reconhecimento do potencial do big data. “Precisamos compreender os dados, não apenas ter os dados”, disse ele. Por exemplo, uma nova zona de carga sendo usada por um novo tipo de veículo pode causar mudanças na superfície da estrada e novos riscos para os pedestres. Mas como você conecta esses pontos? Esse tipo de aprendizagem requer mais colaboração.



Transporte como motor de mudança

“Não se pode falar sobre transporte de forma isolada”, disse Makhtar Diop, vice-presidente de infraestrutura do Banco Mundial. Ele reiterou que a COP26 será um momento crítico para o setor. “Temos muitas estrelas alinhadas para causar um grande impacto”, e não apenas no clima, mas nos muitos objetivos de desenvolvimento interligados que o transporte aborda.

À medida que o setor se adapta à nova realidade de um cenário modificado, os líderes pediram mais colaboração e compartilhamento de responsabilidades na solução de problemas.

“Precisamos de uma ação coletiva entre o setor privado e o setor público”, disse Florent Menegaux, CEO da Michelin. “Precisamos do setor financeiro para financiar a transição, que aceitem o fato de que não podem financiar com base no modelo antigo, para aceitar o risco com base no novo modelo.”

“O setor privado pode, de fato, ser o facilitador e o acelerador das soluções críticas necessárias”, disse Stephanie von Friedeburg, diretora operacional e diretora administrativa interina da International Finance Corporation. A IFC, que incentiva o crescimento do setor privado nos países em desenvolvimento, prometeu US$ 8 bilhões em “apoio financeiro acelerado” às empresas.

Há sinais de que a pandemia estimulou uma mudança de mentalidade. McKinnon disse que, durante a crise, as empresas de logística têm compartilhado ativos entre si muito mais do que no passado e que, em uma pesquisa recente com líderes de empresas de logística, a grande maioria disse que a pandemia não afetará seus planos de descarbonização ou até que os afetará positivamente.

Em Luxemburgo, “vemos que cada vez mais as pessoas usam a bicicleta não apenas para lazer, mas para seus negócios diários”, disse François Bausch, vice-ministro da Mobilidade e Obras Públicas. Com base em pesquisas públicas, ele citou evidências de “mudanças de paradigma” no comportamento do transporte e até mesmo observou uma rápida recuperação no número de passageiros do transporte coletivo no país.

“Parece que as bicicletas e bicicletas elétricas farão parte do novo futuro do transporte. E talvez ele chegue mais rápido do que pensávamos”, concordou Jürgen Zattler, vice-diretor geral de política multilateral e europeia do Ministério para Cooperação e Desenvolvimento Econômico em Alemanha. “[Precisamos] olhar para investimentos que tenham duplo benefício, que nos equipem melhor para os desafios futuros... É isso que vai transformar nossas cidades.”



“Acho que a crise da Covid-19 nos trouxe aprendizados: estamos vendo a importância de mudar o que não funcionava antes e percebemos a urgência da crise climática”, disse Pablo Fajnzylber, diretor global interino do Banco Mundial Transport Global Practice, que co-sediou a conferência.

“A Covid nos mostrou que, quando não temos carros nas ruas, é possível ter ar puro e ver as montanhas... Todos viram o que o transporte pode fazer... e o que não deveria fazer”, disse Ani Dasgupta, diretor global do WRI Ross Centro para Cidades Sustentáveis. “Nós, como comunidade, temos um papel a cumprir – mostrar como podemos usar o transporte como um motor de mudança para a recuperação verde.”

“Precisamos usar esse ‘espírito de caos’ para reconstruir de maneira diferente”, disse Stientje Van Veldhoven, ministro do Meio Ambiente e Habitação da Holanda. “Precisamos ir mais rápido e mais longe. Não temos tempo a perder."


Para obter mais informações sobre Transforming Transportation, visite transformingtransportation.org. E junte-se à conversa no Twitter com # TTDC21.

Este artigo foi publicado originalmente no TheCityFix.