Em 2017, 11 cidades brasileiras uniram-se pelo propósito de devolver as ruas às pessoas. Desde então, a Rede Nacional para a Mobilidade de Baixo Carbono quase dobrou de tamanho. Já são 19 cidades, cinco projetos-piloto concluídos, quatro em fase de implementação e outros prestes a sair do papel. A iniciativa tem contribuído para transformar o paradigma de desenho urbano no Brasil – uma Rua Completa por vez.

Ruas Completas são vias que cumprem sua função como espaço público de convivência e movimentação segura e confortável para todos os públicos. O conceito se apresenta como alternativa à visão ultrapassada – e ainda vigente – que privilegia o tráfego de veículos em detrimento da distribuição equilibrada e democrática do espaço viário.

Superar um paradigma tão arraigado é um desafio complexo que a rede organizada pelo WRI Brasil e a Frente Nacional de Prefeitos (FNP) enfrenta em três frentes: a capacitação de técnicos e gestores de prefeituras por meio de oficinas sobre Ruas Completas promovidos pelo WRI Brasil; a elaboração e implementação de projetos-piloto; e o engajamento progressivo de novas cidades, organizações e universidades.

Ao longo dos primeiros dois anos e meio, Instituto Clima e Sociedade (ICS), CitiBank, Itaú, Bloomberg Philantropies, FIA Foundation e Ross Philantropies somaram apoio financeiro ao projeto. São Paulo, Porto Alegre, Salvador, Juiz de Fora e Campinas já têm intervenções implementadas, e Curitiba, Fortaleza, São José dos Campos e Niterói estão com obras em andamento. Além das cidades que integram a rede, dezenas de outros municípios conheceram boas práticas de desenho urbano e mobilidade ao participar de oficinas e seminários online.

<p>Rua Joel Carlos Borges em São Paulo</p>

Intervenção de urbanismo tático na rua Joel Carlos Borges, em São Paulo, garantiu conforto e segurança em deslocamentos a pé para a estação Berrini da CPTM (foto: Pedro Mascaro/WRI Brasil)

Contexto urbano: uma rua não é uma ilha

Em 2017, São Paulo usou apenas tinta, tachões e balizadores para estender as calçadas e reduzir a velocidade dos carros na pequenina rua Joel Carlos Borges. A intervenção de urbanismo tático custou menos de R$ 100 mil e garantiu espaço, conforto e segurança para milhares de pedestres que diariamente percorrem a rua de um quarteirão indo ou voltando da estação Berrini da CPTM. Recentemente, Salvador investiu R$ 4,8 milhões em ciclovia, melhores calçadas, áreas de descanso e outras melhorias na rua Miguel Calmon – um conjunto de intervenções que se estende por mais de 1 quilômetro e promete resgatar a vitalidade da rua histórica.

Distintas em extensão, custo e complexidade, as duas intervenções mostram que não existe modelo único: uma rua se torna completa quando é requalificada para atender às suas reais vocações – o uso que a população faz da rua e que faz sentido para a região. Cabe às cidades decidir por qual rua começar, descobrir as expectativas e anseios do público e promover a distribuição adequada do espaço.

“Vias em locais com grandes fluxos de pedestres e demais usuários vulneráveis são indicadas para receber projetos-piloto de Ruas Completas, uma vez que as melhorias de conforto e segurança viária nesses locais trarão grandes benefícios facilmente mensuráveis”, explica Bruno Batista, analista de Mobilidade Ativa do WRI Brasil. Por isso, projetos no entorno de escolas, estações de transporte público e nos centros históricos das cidades são algumas das áreas em que as cidades da Rede estão implementando esse conceito.

<p>Rua Joao Alfredo em Porto Alegre</p>

Em Porto Alegre, Rua João Alfredo passou por intervenções para gerar vitalidade diurna e segurança durante o dia e à noite – quando tem vida boêmia agitada (foto: Daniel Kener Neto/WRI Brasil)

Oficinas e seminários formam cadeia multiplicadora

Desde 2017, dois encontros anuais da iniciativa promovem troca de experiências entre as cidades integrantes e painéis sobre temas fundamentais como desenho viário, urbanismo tático, governança, financiamento e medição de impacto, ministrados por especialistas convidados.

Nas oficinas sobre Ruas Completas, as cidades da Rede esboçam seus projetos, com apoio de técnicos do WRI Brasil. As atividades extrapolam os limites da Rede e incluem gestores e técnicos de outras cidades. Os convidados enriquecem o debate sobre os projetos e levam novos conhecimentos para suas prefeituras. Somente no primeiro ano, 11 oficinas atingiram mais de 340 técnicos e gestores de 65 municípios.

Além disso, o WRI Brasil iniciou em 2018 a realização dos seminários online de Ruas Completas. Transmitidos ao vivo, os seminários exploram temas relacionados à construção de ruas mais seguras, saudáveis e equânimes e são espaço aberto para dúvidas e contribuições do público. “Além de levarem a mensagem mais longe, os seminários engajam outras organizações. Toda a série foi apresentada por alguém do WRI Brasil e alguém de fora”, explica Paula Santos, gerente de Mobilidade Ativa do WRI Brasil.

Em 2019, a série teve como tema "Ruas Completas e Universidades” e contou com exposições de professores da Rede de Professores Universitários pelas Ruas Completas, que reúne profissionais da educação das cinco regiões do Brasil interessados em disseminar boas práticas de desenho viário, mobilidade e acessibilidade. Segundo Ariadne Samios, analista de Mobilidade Ativa do WRI Brasil, a iniciativa foi criada com dois objetivos: disseminar o conceito de Ruas Completas na formação dos futuros planejadores e planejadoras e aproximar os professores das prefeituras.

Essa aproximação já ocorre e rende frutos. Em Salvador, alunos da UNIFACS têm colaborado com a prefeitura na medição de impacto das intervenções na rua Miguel Calmon. Conceitos de desenho viário alinhados ao projeto têm sido incorporados em cursos de graduação de cidades da Rede, como Juiz de Fora e Porto Alegre, e também em outros municípios, como São Leopoldo (RS) e Arapiraca (AL).

Transformação continuada

Cada novo projeto-piloto de Ruas Completas é fonte de aprendizados e vitrine para que a população e outras cidades percebam os benefícios de se integrar o planejamento do uso do solo com o da mobilidade. Na pioneira São Paulo, a intervenção foi aprovada por 92% dos usuários. A cidade tem incorporado essa visão sistêmica à legislação, com plano diretor, plano de mobilidade e plano de segurança viária que buscam a qualificação das ruas de acordo com o contexto. Teresina, mesmo sem integrar a Rede, incluiu conceitos de Ruas Completas no plano diretor que deve ir à votação na Câmara ainda em 2019.

A assimilação dos princípios de Ruas Completas pelo marco regulatório das cidades é uma forma de garantir escala e continuidade à transformação – o que tende a ocorrer à medida que a população e os gestores percebam os benefícios dos projetos-piloto para as redes de transporte, a mobilidade ativa, a economia local e o meio ambiente.

Nos próximos meses, Porto Alegre e Salvador devem concluir as primeiras etapas de suas medições de impacto. Os resultados devem integrar uma publicação, a ser lançada pelo WRI Brasil, com o histórico de casos dos primeiros três anos da Rede, revelando os percalços e conquistas de cidades que apostaram na ideia e se somaram a esse esforço conjunto de transformar o paradigma do desenho urbano no Brasil.